Quo vadis, Donaldus? I - Relatório Reservado

O que precisa ser dito

Quo vadis, Donaldus? I

  • 14/04/2025
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A frase latina “Quo vadis?” significa “Para onde vais?” e consta de um antiquíssimo relato apócrifo segundo o qual, fugindo da perseguição promovida pelo Imperador Nero, São Paulo encontra Jesus ressuscitado e pergunta para onde ele vai, recebendo como resposta: “Vou a Roma para ser crucificado de novo”. No entanto, com o tempo, a carga religiosa da citação foi se esvaindo e a pergunta passou a ser dirigida a todos aqueles que parecem sem rumo – motivo pelo qual podemos empregá-la nos dias de hoje para indagar aonde quer chegar o imperador Donaldus, que, pelo jeito, mudou seu trono de Roma para Washington.

As dúvidas universais sobre os reais propósitos dessa personificação do presidente norte-americano se tornaram mais agudas em virtude da recente reviravolta ocorrida na questão do tarifaço. Segundo os áulicos de Donald Trump, tratou-se simplesmente de mais uma cartada do mestre, que já obtivera o resultado desejado ao trazer à mesa de negociação dezenas de “ass kissers” (tradução literal vedada para alminhas delicadas), com a óbvia exceção da atônita nação de camponeses que atende pelo nome de China. Mas somente um “imbecil” do porte do czar das tarifas, Pete Navarro, segundo a caracterização pública dele feita por Elon Musk, não veria que o presidente de fato “amarelou” diante dos trilhões de dólares que evaporaram no curso de poucos dias em todas as bolsas de valores do planeta.

E, sem dúvida, quando bilionários como Sam Altman e Musk, embora adversários declarados, vieram a público condenar a festa do Dia da Libertação, não restou alternativa a Trump senão proclamar como vitória uma pausa de 90 dias enquanto aplicava a todos os países uma taxa de 10% (exceção feita, cumpre repetir, do inimigo n° 1). Pior ainda, numa notinha lançada sem fanfarras, uma obscura repartição pública anunciou mais recentemente a eliminação de tarifas sobre celulares e dezenas de outros produtos eletrônicos, incluindo aqueles provenientes da China e com efeito retroativo. Xi Jinping e os tech-bilionários devem ter soltado gargalhadas de abalar os alicerces da Casa Branca!

Não surpreende que os mercados financeiros tenham recuperado ao menos parte do que haviam perdido na semana anterior ao que Tio Sam chama de flip-flop, mas o saldo final está longe de representar um alívio permanente. Em primeiro lugar, porque Trump perdeu definitivamente o que restava de confiança entre amigos e inimigos no mundo todo, mas também no seu próprio país, como já o demonstram as pesquisas de opinião pública. Em segundo lugar, e mais importante, porque a suspensão da aplicação dos tarifaços é, mais uma vez, temporária, permanecendo assim a ameaça mafiosa de que a loja ainda pode ser arrebentada com bastões de beisebol ou decepada a cabeça do cavalo de estimação. Em terceiro lugar, como consequência dos fatores já indicados, porque permanece ou mesmo se agrava o clima generalizado de incerteza que os empresários e financistas odeiam – e que tornam inviável qualquer investimento de peso em qualquer lugar.

Com isso, a reindustrialização dos Estados Unidos pretendida pelo presidente fica ainda mais distante, sendo substituída por ações como aquela tomada pela Apple ao encher enormes aviões de carga na Índia para importar 1,5 milhão de celulares antes da imposição das tarifas que incidiriam sobre aquele país. Imaginem, como é previsível, que outros setores que necessitam de importações maciças façam o mesmo para acumular estoques nesses 90 dias. Só a indústria de roupas importa quase US$ 100 bilhões anualmente de países como Bangladesh, Camboja, Índia, Indonésia e Paquistão, todos mortalmente atingidos pelo tarifaço.

Ora, é bem possível que nesses próximos três meses o valor das compras externas dos Estados Unidos registre um aumento excepcional, mas já podemos também prever qual será a narrativa falsa da Casa Branca: como tais compras terão de pagar o pedágio de 10%, Trump dirá que a receita derivada da aplicação das tarifas teve um crescimento formidável, demonstrando como era correta e brilhante sua estratégia! E não faltarão os aplausos dos vassalos desmiolados.

A chantagem tarifária perturba gravemente todas as cadeias de suprimento em nível global, mas terá impactos de curto prazo na economia real sobretudo dentro dos próprios Estados Unidos devido à suspensão de facto das importações provenientes da China (com as vergonhosas exceções que já surgiram). É óbvio ademais que as incertezas sobre o futuro aumentam a probabilidade de recessão e inflação também em escala planetária. Mas há riscos ainda maiores para os Estados Unidos de que trataremos em outro artigo.

Jorio Dauster é colaborador especial do Relatório Reservado

 

#Donald Trump #Estados Unidos #Política Externa

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