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Hoje é certamente um dia de comemorações que todos nós esperamos não sejam apenas passageiras. Mas o grande perdedor nos embates das últimas semanas foi Benjamin Netanyahu, que, na Assembleia Geral da ONU de 2024, havia exibido arrogantemente ao mundo o mapa do Grande Israel que ia do rio Jordão ao Mediterrâneo, com a anexação definitiva de Gaza e da Cisjordânia.
Certo de contar com o apoio eterno e irrestrito dos Estados Unidos, o primeiro-ministro de Israel cometeu dois erros capitais. O primeiro consistiu em levar adiante, com renovado vigor, os processos de genocídio e domicídio (destruição da infraestrutura e de todos os imóveis) em curso desde outubro de 2023, após o bárbaro e indefensável ataque terrorista do Hamas em território israelense.
Combinado com a imagem de crianças famintas e cidades reduzidas a pó, isso fez com que a opinião pública mundial acabasse por se voltar contra Israel. E a maior prova disso foram as crescentes manifestações de apoio à criação de um Estado palestino por importantes países como França, Reino Unido, Portugal, Espanha, Canadá e Austrália, de tal modo que hoje 157 dos 193 membros das Nações Unidas tenham assumido essa postura.
O segundo erro – esse, sim, definitivo – foi o ataque aéreo realizado em 9 de setembro de 2025 que visava eliminar toda a liderança do Hamas na cidade de Doha, capital do Catar, quando ela já discutia a proposta de cessar-fogo feita pelos Estados Unidos. Entre os alvos se incluía Khalil al-Hayya, principal negociador do Hamas, mas a operação fracassou e só deixou como vítimas pessoas de menor projeção política, guarda-costas e até um agente de segurança catariano.
Há indicações de que Netanyahu comunicou previamente o ataque a Trump, pairando até hoje a dúvida se ele o autorizou ou apenas se deu por informado. O fato, contudo, é que o tiro saiu monumentalmente pela culatra: desejando interromper de imediato as tratativas de cessação das hostilidades, a aventura belicosa de Israel teve o fulminante efeito contrário de selar a aprovação do plano de pacificação norte-americano à revelia real de Netanyahu e de seus apoiadores da ultradireita política e religiosa.
Acontece que, durante a recente reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, enfurecidos com a agressão israelense a um país aliado que abriga a Base Aérea de Al Udeid, maior instalação militar norte-americana no Oriente Médio, os líderes de oito nações árabes e muçulmanas tiveram uma reunião pouco divulgada com Trump, onde deram um basta coletivo às ações atrabiliárias comandadas por Netanyahu.
O atual ocupante da Casa Branca, com sua esperteza em situações críticas, entendeu a mensagem definitiva e praticou mais uma de suas famosas TACOadas, levando na devida conta os fortíssimos interesses políticos e econômicos que o unem àqueles interlocutores. Cumpre não esquecer que a primeira viagem internacional de Trump neste segundo mandato foi para o Oriente Médio, visitando especificamente a Arábia Saudita, os Emirados e o injuriado Catar.
Os entendimentos, então formalizados numa proposta complexa de paz, representaram também uma significativa derrota para Trump: desapareceram, como num passe de mágica, suas reiteradas declarações anteriores de apoio à limpeza étnica da Faixa de Gaza com a expulsão dos mais de dois milhões de palestinos para a construção de imensos “resorts” turísticos.
Desfizeram-se no ar as ideias estapafúrdias de anexação de Gaza e da Cisjordânia por Israel. Surgiu até, modestamente, a possibilidade distante de criação do Estado palestino!
E, no dia 29 de setembro, Netanyahu foi convocado à Casa Branca para o “dá ou desce”, sendo obrigado a declarar formalmente seu apoio ao plano de Trump e submetido à humilhação pública de, diante das câmeras, telefonar para o primeiro-ministro do Catar, Mohammed bin Abdulrahman bin Jassim al-Thani, pedindo desculpas por haver violado a soberania de seu país e prometendo que Israel jamais voltaria a fazê-lo.
O Hamas, fragilizado e instado pelos países árabes e muçulmanos a aceitar os termos do plano ou ficar totalmente isolado, por fim concordou em entregar seu maior trunfo, que eram os reféns ainda vivos. Soube fazê-lo com a necessária circunspecção, sem os costumeiros espetáculos de poderio militar que de fato não mais possui sem o apoio material do Irã.
Recebe de volta dois mil de seus correligionários detidos em Israel, numerosos deles condenados à prisão perpétua, e viu começar a chegar a ajuda humanitária de que tanto necessitam os torturados seres humanos – crianças, mulheres e homens – que eles pretendem representar.
Na conferência de cúpula hoje realizada em Sharm El-Sheikh, os presidentes dos Estados Unidos, do Egito e da Turquia, bem como o primeiro-ministro do Catar, intermediários nos acertos entre Israel e o Hamas, assinaram o acordo de paz cuja complexíssima execução o mundo acompanhará com a respiração suspensa.
Vale notar que, convidado a participar, Netanyahu declinou na última hora invocando um feriado religioso judaico – embora seja voz corrente que o primeiro mandatário turco, Erdogan, e outros líderes não desejavam contar com sua presença.
Embora aguardada desde o encontro entre Lula e Trump na Assembleia Geral das Nações Unidas, foi auspiciosa a videoconferência desta manhã devido ao clima positivo e amistoso que ambas as partes confirmaram independentemente. Para um profissional que chama o Itamaraty de “minha Casa”, o mais importante foi o fato de que a notícia da reunião virtual pegou todo mundo de surpresa, não havendo ao que se saiba nenhum vazamento em Brasília ou Washington, embora certamente ela tivesse sido cercada de todo o ritual que envolve os diálogos entre chefes de Estado pois, de outra forma, nosso presidente não estaria acompanhado de seus principais auxiliares nos contatos com os Estados Unidos. Isso significa que a questão já se encontra na mão dos profissionais, quando são bem menores os riscos de acidentes de percurso.
Abre-se assim o espaço esperado para uma discussão de temas econômicos, ficando na lixeira da História a tentativa mal-sucedida de Trump de utilizar o julgamento de Jair Bolsonaro como um pretexto para atacar a soberania brasileira. Essa estratégia, sem dúvida preconizada por figuras malignas como Steve Bannon, atraiu Eduardo Bolsonaro para uma aventura suicida em que ele se julgou, junto a Paulo Figueiredo, capaz de ditar a política da Casa Branca com relação ao Brasil. Como recordação desse desvario, ficarão para sempre as imagens inesquecíveis da imensa bandeira norte-americana na Avenida Paulista e o boné MAGA usado por um Tarcisio sorridente.
Obviamente, Trump – que nada tem de louco pois é um frio negociador sempre disposto a voltar atrás quando as circunstâncias exigem – foi informado de que se transformara no melhor cabo eleitoral de Lula, vivendo meses atrás seu pior momento na política. Mais ainda, entregara de bandeja às forças da esquerda os símbolos nacionais verdes e amarelos que a direita vinha utilizando para caracterizar seu amor à Pátria e à família. Diante do comportamento impávido do Supremo Tribunal Federal, de importantes segmentos do próprio Congresso e sobretudo das ruas, as ameaças ruíram. Nada mais significativo disso do que a circunstância de Trump, em seu discurso na ONU, não haver nem mesmo mencionado o nome de Jair Bolsonaro ou sua condenação a vinte e sete anos de prisão. Para bons entendedores, página virada.
Há quem, ainda hoje, tenha ficado preocupado com a designação de Marco Rubio como principal responsável pelas futuras tratativas com a trinca Alckmin, Haddad e Vieira. Sem dúvida, o Secretário de Estado norte-americano, como muitos descendentes de famílias que tiveram de abandonar Cuba durante o regime de Castro, é uma figura que defende o alinhamento automático dos países da América Latina às diretrizes emanadas de Washington, que gostaria de ver o Brasil se afastar do BRICS, que prefere lidar com um Milei do que com Lula. Mas, a rigor, esses desejos sempre estiveram mais ou menos presentes em nosso relacionamento com os Estados Unidos e o que se vê ultimamente é um domínio absoluto de Trump sobre seus áulicos. Rubio fará o que seu mestre mandar.
Finalmente, conheceremos em breve, como era bem sabido, os reais interesses norte-americanos no tocante às Big Techs e seus data centers, bem como com aos minerais estratégicos e à maior presença do etanol no mercado brasileiro. No outro prato da balança estarão nossos interesses em eliminar os 40% de tarifas punitivas, já aplicada a uma gama bem menor de produtos do que se temia no primeiro momento, contando, nesse caso, com o trabalho dos empresários prejudicados nos dois países.
O que se recomenda agora é grande sobriedade da parte do Palácio do Planalto – aliás já visível desde que Lula se aprestava a ir a Nova York –, a necessária tranquilidade para que os profissionais possam trabalhar longe das luzes da ribalta. Repor um comboio de trens nos trilhos é tarefa de engenheiros especializados.
Quando Donald Trump declarou ontem na Assembleia Geral das Nações Unidas que tinha se encantado tanto com a figura de Lula a ponto de decidir manter uma conversa entre os dois na próxima semana, muitos de nossos analistas cantaram loas ao extraordinário charme e capacidade de persuasão do presidente brasileiro. Coisa incrível, não é mesmo? Num encontro de 40 segundos no relógio (ou melhor, no cronômetro), o experimentado Trump teria se derretido como uma mocinha ávida diante do olhar insinuante de um Marlon Brando ou Paulo Newman quando ambos tinham uns 25 anos. Suspiros na plateia…
E muitos deixaram por isso de ver que estávamos diante de mais uma típica manobra trumpiana, mais um TACO (Trump Always Chickens Out) de tantos que já o fizeram famoso! Mais uma vez, quando passou a lhe interessar, ele se fez de maluco ou impulsivo, acrescentando supostamente de improviso – “espontaneamente”, como definiu um funcionário de seu Departamento de Estado – palavras sobre o Brasil que nada tinham a ver com o corpo de seu discurso.
Nada disso, foi jogo jogado. Não se viram por acaso num corredor, e, sim, numa salinha que fica atrás do púlpito de mármore dos oradores. Sabiam que se encontrariam e há dias Lula já vinha adoçando suas falas a fim de permitir que Trump desse o primeiro passo para quebrar o gelo entre os dois países. Obviamente, ele teria visto ao longo das últimas semanas que os maus conselhos de Steve Bannon e seus asseclas brasileiros, Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo, tinham constituído um tremendo tiro no pé ou, quem sabe, um pouco mais acima em parte bem sensível da anatomia masculina. Afinal de contas, o eleitorado brasileiro demonstrava seu apoio à condenação e prisão de Jair Bolsonaro; os ministros do STF em sua maioria não haviam se borrado nas calças (e dois que não pertenciam à Primeira Turma deixaram claro que haveria maioria no plenário para o que faziam seus quatro colegas); o Congresso como todo não correra a aprovar, trêmulo, uma lei de anistia geral e irrestrita que permitisse ao ex-presidente até mesmo concorrer, livre como um passarinho, nas eleições do ano vindouro. Em suma, Trump e suas ameaças contra a soberania nacional, em vez de apavorarem uma republiqueta de bananas, haviam gerado um movimento de afirmação nacional poucas vezes visto: Trump se tornara o melhor cabo eleitoral de Lula.
Era hora, portanto, de cantar em outro terreiro e, significativamente, nos seus cândidos comentários sobre o Brasil na ONU, Trump não fez nenhuma menção ao julgamento e condenação de Bolsonaro. Nenhunzinho! Muito pelo contrário, concentrou suas observações nas reclamações que ouve das big techs – cujos donos se colocam entre seus maiores financiadores e sócios.
Nada impede, é evidente, que no contato marcado para daqui a alguns dias Trump volte a levantar todas as questões que fazem parte de seu arsenal contra o Brasil, incluindo a condenação de Bolsonaro e posturas internacionais pró-BRICS. Isso seria uma manobra natural para intimidar Lula, porém ele encontrará do outro lado do fio telefônico ou da videoconferência um político de larga quilometragem, que saberá rebater esses pontos e novamente se beneficiar como defensor da soberania nacional e do regime democrático. Depois desses pegas eventuais, caso de fato ocorram, haverá, enfim, espaço para o início de negociação sobre as tarifas (que incomodam os próprios empresários norte-americanos) e dos regulamentos que imporemos no Brasil às big techs.
Jorio Dauster é diplomata de carreira e foi embaixador do Brasil junto à União Europeia, colaborador especial do Relatório Reservado.
A diplomacia sem aspas já foi caracterizada como arte ou ciência, mas é simplesmente uma forma milenar de conduzir as relações entre entidades soberanas buscando, pela via da negociação, soluções mutuamente aceitáveis que previnam a eclosão de conflitos. Esse utilíssimo instrumento civilizatório obedece a normas fixadas em tratados e se vale de rituais consagrados pela prática no curso dos séculos.
Ou assim era até janeiro deste ano, quando Donald J. Trump assumiu pela segunda vez a presidência dos Estados Unidos da América, ainda hoje o país mais rico e militarmente mais poderoso do mundo, que se autodeclara um exemplo magnífico de democracia e respeito aos direitos humanos. A partir de então, foi inaugurada aquilo que já chamei de “diplomacia da chantagem” pela qual, valendo-se de métodos aprendidos graças à sua formação no bairro nova-iorquino do Queens e às atividades do pai, que possuía moradias para aluguel segregadas racialmente, Trump tenta subjugar alguns países e extrair de todos vantagens obtidas por meio da aplicação de tarifas abusivas e sanções de todo tipo.
A fim de executar suas propostas de campanha, Trump adotou desde o primeiro dia uma postura autocrática e imperialista, ignorando ou violando abertamente leis federais, regulamentos e até mesmo a Constituição mediante o uso de ordens executivas baseadas em legislações emergenciais, uma delas datada de 1798! Apesar de ter vários desses “decretos” questionados na Justiça, a expectativa geral é de que a Corte Suprema, atualmente dominada por juízes conservadores (três dos quais designados pelo próprio Trump), endossará todas ou quase todas as medidas excepcionais impostas pelo Executivo.
Vale notar que tais medidas espelham total ou parcialmente as recomendações contidas no Project 2025, uma coletânea de propostas de políticas de direita ou de ultradireita que visam remodelar o governo dos Estados Unidos mediante o fortalecimento do poder executivo. Ou seja, contrariando a impressão muito difundida de que Trump é louco ou age com base em impulsos dignos de um egomaníaco, trata-se na essência de um plano de voo bem amadurecido que passou pela cooptação do Partido Republicano e ganhou poder no MAGA.
Na área multilateral, Trump iniciou o desmonte da rede de instituições criada basicamente pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, mais uma vez retirando seu país do Acordo de Paris e abandonando o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a Unesco e a Organização Mundial da Saúde, além de suspender as contribuições para a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo e à Organização Mundial do Comércio.
Repetidamente, anuncia seu humilhante desejo de anexar o Canadá como 51º estado e ameaça ocupar militarmente a Groenlândia (que é um território autônomo dentro do reino da Dinamarca) e o Canal do Panamá, além de oferecer apoio integral a Benjamin Netanyahu em suas ações voltadas à criação do Great Israel, que vai do rio Jordão ao Mediterrâneo e implica a submissão/expulsão/extermínio dos palestinos que lá vivem há séculos.
Nas visitas feitas por chefes de Estado a Washington, em vez de seguir o formato tradicional de uma entrevista conjunta à imprensa depois dos encontros reservados, Trump agora as inicia com uma conversa no Salão Oval a que tem amplo acesso a mídia. Nesse novo modelito, ele já humilhou publicamente Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, e Cyril Ramaphosa, presidente da África do Sul, nesse caso o acusando falsamente de conduzir uma “limpeza étnica” contra os brancos em seu país.
Revelando sua ignorância em matéria econômica, Trump escolheu as tarifas como arma preferencial para as incursões mafiosas, argumentando que os Estados Unidos vinham sendo vilmente explorados por todos os países que exibiam saldo positivo no intercâmbio bilateral. No entanto, essa vitimização sem fundamento ruiu quando ele impôs tarifas punitivas ao Brasil que, pelo contrário, apresentava um pequeno déficit na área de comércio e um gigantesco déficit na área de serviços com os Estados Unidos.
E foi quando a máscara do imperialismo trumpiano caiu de vez, pois ele precisou apelar para o falso argumento de que o Brasil perseguia politicamente o ex-presidente que tentara dar um golpe idêntico ao dele em 6 de janeiro de 2021, com a invasão do Capitólio. Não custa lembrar que, em seu primeiro dia na Casa Branca, Trump perdoou cerca de 1.600 pessoas já condenadas ou aguardando julgamento por crimes relacionados àquele episódio, comutando as penas de 14 que agiram com maior violência.
Qualquer semelhança com o pedido de anistia aos envolvidos nas arruaças ocorridas na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 obviamente não é mera coincidência. Desde então, sem que necessitemos relembrar o que está gravado para sempre na mente dos brasileiros realmente patriotas, assistimos a uma série de ataques à nossa soberania e à independência dos poderes, com penalidades aplicadas a membros do Supremo Tribunal Federal e ameaças criminosas a autoridades do Executivo, Judiciário e Legislativo sob o acicate de um vendilhão da pátria que coloca os interesses de sua família acima dos interesses da nação.
Às provocações do Departamento de Estado, aqui repercutidas insolitamente pela Embaixada norte-americana, o Itamaraty tem respondido com a convocação do encarregado de negócios (já que Trump se recusa a nomear um embaixador enquanto Lula for presidente) para que um funcionário de menor gabarito lhe manifeste o repúdio do Governo à mensagem insultuosa.
A muitos que julgam insatisfatória tal reação, só posso recomendar que façam das tripas coração e entendam que nos está sendo oferecida uma isca envenenada. Caso expulsássemos o tal encarregado de negócios ou chamássemos ao Brasil nossa embaixadora em Washington — gestos compreensíveis diante da agressão em curso — estaríamos apenas oferecendo a Trump a oportunidade de se fazer de vítima e nos impor sanções praticamente equivalentes ao rompimento das relações diplomáticas ou mesmo rompê-las formalmente.
Se ele de fato quiser fazê-lo para demonstrar o repúdio a um país que não se curva a suas exigências imperialistas, que assuma a responsabilidade por haver conspurcado duzentos anos de relacionamento amigável e respeitoso.
Mas não tenhamos ilusões: outras provocações, outras ameaças mafiosas e outras sanções já se encontram na rampa de lançamento de foguetes da Casa Branca de Donald Trump.
Os mais inveterados carnavalescos talvez se lembrem da marchinha de Bob Nelson, lançada em 1947, que deu origem ao título deste artigo. Na curta letra, o aflito autor da chamada pede auxílio porque uma quadrilha quer roubar o seu amor, explicando que “não é que eu tenha medo de bandido, apenas eu não quero é confusão”. Essa insólita recordação me veio à mente devido às intensas discussões na mídia sobre o telefonema de Lula a Donald Trump, embora, nesse caso, o que está em jogo seja a ação de outra quadrilha que desejou roubar uma eleição.
A cautela com respeito à eventual chamada de Lula é justificada devido ao espírito vingativo do atual ocupante da Casa Branca e de seu hábito, como bully de carteirinha, de humilhar publicamente os chefes de Estado que o procuram. Mas creio que os debates ignoram a forma simples e diplomaticamente correta de evitar qualquer embaraço caso finalmente tenha lugar esse contato telefônico.
Exceto em situações de emergência totalmente excepcionais, as conversas entre presidentes, presenciais ou virtuais, são precedidas de entendimentos meticulosos entre as Chancelarias, quando se definem as datas e horas, pautas e propósitos dos contatos. Ora, no caso em tela, confirmando o que Mauro Vieira disse a Marco Rubio na semana passada em Washington, bastaria que afirmássemos claramente que, na projetada conversa telefônica, Lula só cuidaria de temas comerciais, não admitindo discutir questões relativas à soberania nacional ou à independência dos poderes judiciário e legislativo. Não havendo concordância do lado norte-americano, muito bem, muito obrigado, voltamos a falar sobre o assunto se houver alguma mudança na postura de um ou outro. Havendo concordância, são assentados os detalhes pertinentes e o telefonema ocorrerá tal como aprazado.
Ah, dirão os espertinhos, e se o Trump ignorar o combinado e começar a desfiar as reclamações de cunho político de que se valeu para justificar o injustificável tarifaço? Nessa hipótese (bastante realista), é suficiente que Lula – lembrando que não fala com o “companheiro Donald” – use sua proverbial fleuma típica de um lorde inglês e diga com grande elegância: “Sr. Presidente, ficou acertado entre nossas Chancelarias que não trataríamos de matérias políticas neste telefonema, e, sim, exclusivamente de questões comerciais, Peço-lhe que esse compromisso formal seja respeitado pois, de outra maneira, serei obrigado a interromper a ligação e me reservarei o direito de explicar o motivo tornando pública a gravação de nossa conversa feita por ambas as partes.” Xeque mate.
Jorio Dauster é um colaborador especial do Relatório Reservado.
A menos que Donald Trump desista inesperadamente do ultimato imperialista que lançou contra o Brasil, todos os produtos por nós exportados para os Estados Unidos estarão no dia 1º de agosto sobrecarregados com uma tarifa de 50%, o que corresponde na verdade a um embargo comercial. Os brasileiros não morrerão de fome como as crianças palestinas em Gaza sob o jugo genocida da dupla Trump-Netanyahu, porém os efeitos do tarifaço serão muito severos para alguns setores da economia, implicando perda de renda e desemprego quando não o fechamento de numerosas empresas.
É hora, pois, de pensarmos no “day after”, que para nós é o 2 de agosto, no famoso mês do desgosto assim chamado porque era quando as caravelas partiam de Portugal deixando chorosas as famílias dos bravos navegantes.
Ficamos sabendo pela mídia que o governo federal e alguns governos estaduais já preparam Planos B para auxiliar os setores atingidos, embora, segundo o que vazou, eles envolvam sobretudo empréstimos emergenciais. Sem desprezar a relevância dessas iniciativas, cumpre ter em mente que os recursos disponíveis são escassos e que o aumento da dívida do setor produtivo, mesmo em condições favoráveis de prazo e juros, não representa uma solução estrutural.
Em termos de retaliação direta, a primeira opção reside na aplicação da Lei de Reciprocidade com base na qual o governo poderia, por exemplo, aplicar tarifas sobre os produtos provenientes dos Estados Unidos e/ou tributar maiormente as remessas de dividendos de empresas norte-americanas. É fundamental que não caiamos nessas duas tentações porque a primeira só serviria para aumentar as pressões inflacionárias e a segunda para espantar o capital estrangeiro de todas as origens de que tanto necessitamos. Nada impede, contudo, que examinemos com cuidado a possibilidade de suspender as patentes de produtos farmacêuticos e sementes agrícolas detidas por grandes corporações norte-americanas, nesse caso com benefícios para o sistema de saúde e o agronegócio nacionais.
Paralelamente, cumpre buscar com afinco novos mercados para os bens afetados, porém sabemos que é impossível encontrar, a curto e médio prazos, consumidores para os grandes volumes de produtos agropecuários que vendemos tradicionalmente aos Estados Unidos. Uma alternativa seria vendê-los, a preços subsidiados, para as agências da ONU que cuidam de combater a fome em Gaza e outras regiões devastadas por conflitos que não ganham as manchetes de jornais.
No entanto, há um enorme mercado de mais de 200 milhões de consumidores que não aplica tarifas nem tem seu acesso dificultado por complexos problemas de logística: o Brasil brasileiro! Tratemos, assim, de comprar pelo menos parte dessas carnes, desses pescados, desses sucos de laranja, desses cafés e dessas frutas para reforçar as merendas escolares em todo o território nacional, para melhorar a qualidade das refeições servidas em restaurantes populares! Quem sabe essas medidas emergenciais só serão necessárias por alguns meses porque, quando os efeitos do embargo aos produtos nacionais chegar às prateleiras dos supermercados e aos balcões das lanchonetes, o imperador Donaldus verá que seu tiro saiu pela culatra.
Jorio Dauster é um colaborador especial do Relatório Reservado.
Em toda a imprensa, são frequentes as queixas de que o governo brasileiro tem alguma responsabilidade pela ameaça de imposição por Donald Trump do tarifaço por não contar com uma diplomacia econômica eficaz. Na realidade, embora não se conheçam os detalhes das tratativas ocorridas, é sabido que Geraldo Alckmin conversou com o Secretário de Comércio norte-americano, Howard Lutnick, e o Representante de Comércio dos Estados Unidos, Jamieson Greer, tendo havido também encontros de trabalho de seus assistentes. Como a tudo isso se seguiu uma carta-proposta do governo brasileiro em maio que nunca foi respondida, cumpre questionar a interpretação simplista de que tudo se deve a nosso desinteresse em encontrar soluções no campo comercial.
Porque, então, de surpresa, veio o tarifaço de 50% sobre o Brasil bem típico da diplomacia da chantagem executada há meses por Trump, mas certamente agora acionada por pressão das big techs (controle de postagens antidemocráticas etc.) e do sistema financeiro (PIX, etc.), numa decisão estimulada pela reunião de cúpula do BRICS+ no Rio de Janeiro e usando Bolsonaro como pretexto. Dessa forma, o que era uma negociação tarifária se transformou, num passe de mágica, no gravíssimo problema político-ideológico que estamos vivendo ao implicar inaceitáveis atentados à soberania nacional.
No entanto, numa análise fria do imbróglio é impossível escapar à conclusão de que se trata essencialmente de uma questão geopolítica em que as políticas “esquerdistas” do governo de Lula, tal como vistas pela direita norte-americana, constituem um risco a ser varrido daquilo que Trump e seus áulicos declaram ser o quintal dos Estados Unidos.
E o cerne deste movimento tem como foco o BRICS+, embora na realidade, devido à extraordinária diversidade de seus membros, ele não seja hoje e nunca será uma aliança política, e, sim, um agrupamento de cunho econômico e comercial. Todavia, é evidente que o BRICS+ refletirá o poder da China, a superpotência que se afirmou de forma quase milagrosa no curto período de três décadas e que já se ombreia com os Estados Unidos diante de uma Europa decadente e de uma América Latina e uma África quase irrelevantes em termos de influência internacional.
O fundamental é entender que as duas grandes potências JÁ ESTÃO ENGAJADAS NA SEGUNDA GRANDE GUERRA FRIA e que, por isso, todas as tensões internacionais estão se agravando (Ucrânia, Oriente Médio etc.) e tenderão a se tornar mais agudas no futuro. E o atual conflito entre o Brasil e os Estados Unidos de Trump, por iniciativa de Washington, é parte desse tsunami. Ladies and gentlemen, fasten your seat belts…
Por Jorio Dauster, colaborador especial.
Por fim, a bem conhecida “diplomacia da chantagem” de Trump chegou às terras brasileiras com um vil e inaceitável atentado contra nossa soberania, nossa dignidade como nação independente.
Mas, ao mesmo tempo, o megalomaníaco presidente dos Estados Unidos atentou também contra três sagradas instituições norte-americanas, o que pode lhe custar um notável surto de impopularidade se e quando seus efeitos chegarem às gôndolas dos supermercados e às lanchonetes.
A primeira instituição atingida é o café, com que os cidadãos e cidadãs daquele país abrem o dia ligando a máquina na cozinha muitas vezes antes mesmo de escovar os dentes. Mas não ficam por aí. Segundo as estatísticas disponíveis na internet, cada americano bebe em média três xícaras de café por dia, o que significa um consumo total de 400 milhões de xícaras diárias ou 146 bilhões de xícaras por ano! Mas acontece que os Estados Unidos importam por ano 27 milhões de sacas de café de 60 quilos e UM TERÇO DESSE TOTAL É FORNECIDO PELO BRASIL sem que haja fontes de suprimento no mundo capazes de substituir nossos grãos.
A segunda instituição afetada é o suco de laranja, essencial no breakfast americano. Embora não haja estatísticas precisas sobre o número de pessoas que tomam suco de laranja diariamente, o consumo anual per capita é superior a 10 litros e o setor movimenta cerca de 20 bilhões de dólares por ano. Mas acontece que O SUCO DE LARANJA IMPORTADO DO BRASIL REPRESENTA CERCA DE METADE DE TODO O CONSUMO DO PAÍS E MAIS DE 60% DAS IMPORTAÇÕES sem que haja fontes de suprimento no mundo capazes de substituir nosso produto.
A terceira instituição impactada é o hambúrguer, um ícone cultural americano que se espalhou pelo planeta. Segundo o Departamento de Agricultura, os americanos consomem em média 2,4 hambúrgueres por dia, o que significa 50 milhões por ano! Numa época em que os rebanhos de gado do país estão severamente reduzidos, os Estados Unidos são os segundos maiores importadores de carne brasileira, correspondendo atualmente a 21% do total. Mas acontece que A CARNE FORNECIDA PELO BRASIL É TODA OU EM GRANDE PARTE UTILIZADA NA PRODUÇÃO DE HAMBÚRGUERES sem que haja fontes de suprimento no mundo capazes de substituir nosso produto a preços competitivos.
Será que os americanos vão passar a tomar chá, beber água aromatizada no desjejum e comer misto-quente? Por favor, mande suas cartinhas para: Donald J. Trump, White House, Washington, DC.
Ao anunciar que está criando o Partido da América, Elon Musk empurra todas as suas fichas para o centro da mesa e desafia Donald Trump a pagar para ver ou sofrer a suprema humilhação de jogar fora suas cartas. Que se trata de um jogo de vida e morte, ninguém duvida.
Do lado de Musk, o objetivo consiste simplesmente em se tornar de fato a figura dominante na política dos Estados Unidos – não porque seu novo partido se equipararia aos dois tradicionais donos do poder há mais de cem anos, mas porque, apenas com um punhado de senadores e representantes, ele passaria a ser o fiel da balança. Em sua declaração de guerra, mencionando como Epaminondas destruiu o mito da invencibilidade de Esparta em Leuctra, ele deixou claro que buscaria somente obter alguns assentos nas duas casas do Congresso “aplicando uma força extremamente concentrada em locais precisos do campo de batalha”. O possível impacto dessa estratégia bélica pode ser bem compreendido quando se vê que a famosa lei orçamentária de Trump foi aprovada no Senado por 51 votos a 50 (graças ao voto de minerva do vice-presidente Vance) e, na Casa dos Representantes, por 218 a 214. Assim, com um senador e três representantes, Musk teria detonado o carro-chefe legislativo de Trump!
Do lado de Trump, existe a caneta, com a qual já eliminou na nova lei substanciais incentivos aos carros elétricos fabricados pela Tesla, e que pode agora ser usada para cumprir a ameaça que Trump fez publicamente: “Elon talvez receba, de longe, mais subsídios que qualquer ser humano em todos os tempos. Elon provavelmente teria de fechar seus negócios e voltar para a África do Sul. Não mais lançamentos de foguetes, satélites ou a produção de carros elétricos, e nosso país economizaria uma FORTUNA”. Na verdade, estima-se que a SpaceX já firmou contratos com NASA e a Força Aérea representando mais de 20 bilhões de dólares desde 2008, sendo também muito significativos os contratos com a Starlink.
Mas a pergunta que não pode ser calada é: será que Trump tem realmente nas mãos uma quadra de ases (que envolveria até extraditar seu adversário apesar de ser ele um cidadão naturalizado) ou está blefando?
Ora, o fato é que a NASA depende fundamentalmente da SpaceX para executar diversos elementos cruciais de suas operações, em especial a fim de transportar astronautas e carga para Estação Espacial Internacional nas cápsulas Crew Dragon. Todos devem se lembrar de que, após o fracasso da Starliner da Boeing, foram as naves de Musk que trouxeram para a Terra Sunita Williams e Butch Wilmore, “ilhados” na estação durante nove meses. Por outro lado, a Starlink vem se tornando dia a dia mais importante para as forças armadas dos Estados Unidos e de outros países devido à sua capacidade de proporcionar acesso rápido e confiável à internet em regiões remotas ou áreas conflagradas. Isso está ocorrendo na guerra da Ucrânia, em que supostamente os dois campos se valem da rede de satélites em baixa órbita de Musk.
Não é à toa que o cassino fechou as portas, todas as mesas pararam de funcionar e as atenções se concentram no pano verde que separa os dois titãs. Quem se arrisca a fazer um palpite sobre o que vai acontecer?
Jorio Dauster é colaborador especial do Relatório Reservado
Em novembro deste ano, com a realização da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30) na cidade de Belém, os olhos do mundo examinarão a sustentabilidade de tudo que o estado do Pará produz. Suas cadeias de produção mineral, vegetal, agrícola e pecuária têm grande valor econômico e social, apesar de serem em certos casos objeto de críticas devido a práticas prejudicais ao meio ambiente ou atentatórias aos direitos humanos. Nesse último caso, sobressai o grave impacto do trabalho infantil na colheita do açaí.
Há séculos, aquela frutinha roxa vem sendo importante complemento nutricional para os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e moradores das cidades da região. Na década de 1980, graças ao gosto peculiar e benefícios para a saúde, seu consumo começou a se estender para o resto do Brasil e terminou por atingir o mercado externo, fazendo com que a cadeia global do açaí movimente atualmente muitos bilhões de dólares por ano.
Entretanto, fora da Amazônia poucos têm ideia de que, na base dessa imensa estrutura de produção e comercialização, encontramos o gravíssimo problema social da exploração sistemática do trabalho infantil. Embora exista um número crescente de cultivos dos açaizeiros em escala comercial, a maior parte do “ouro roxo” é colhida nas palmeiras altas e frágeis que são encontradas nos quintais das casas ou em meio à floresta. E cabe sobretudo a meninos, a partir dos oito anos, escalar o fino tronco com a ajuda apenas da peconha – um simples laço de corda ou de pedaço de saco que lhes permite apoiar os pés de encontro ao caule e subir usando a força de seus braços e pernas. Levam nessa árdua ascensão, que pode chegar a 20 metros, uma faca afiada com que vão cortar os grandes cachos de açaí que pesam em média mais de 5 quilos.
No passado, quando o fruto era consumido unicamente pela própria família, admitia-se tal função dos filhos mais novos como um fato cultural perfeitamente aceitável. Hoje, com o aumento da demanda e o crescente consumo mundial, essa prática familiar de subsistência tornou-se um modelo de operação com graves consequências sociais, tais como a evasão escolar e a exposição ao risco de sérios acidentes. O inevitável resultado é um índice altíssimo de analfabetismo entre os jovens, contribuindo para que se reproduzam as aviltantes condições econômicas e sociais dos seus pais.
Mas, se tal situação é praticamente desconhecida pela maioria dos apreciadores da frutinha, já foi objeto de reportagens extremamente críticas em importantes órgãos da mídia internacional, como o Washington Post e a CNN, tendo o governo norte-americano incluído o açaí na lista de itens produzidos com trabalho infantil. Isso implica o grande risco de que o produto venha a ser objeto de boicotes de ativistas preocupados com os direitos humanos ou mesmo de embargos de importação impostos por governos pressionados por tais grupos.
Não será fácil superar uma condição degradante que tem fundas raízes culturais e está vinculada à extrema pobreza das comunidades em que ela ocorre: na verdade, o pagamento recebido pelo esforço dos meninos, apesar de ser uma fração insignificante do preço final do produto, constitui complemento essencial da renda familiar, hoje garantida apenas pelo Bolsa Família.
Todavia, caso não se queira que as conquistas do Brasil e do Pará na área da sustentabilidade sejam empanadas durante a COP 30 por críticas contundentes, é imprescindível que a ministra Marina Silva e o governador Helder Barbalho proponham soluções concretas para a erradicação do trabalho infantil na colheita do açaí, valendo-se para tanto dos conhecimentos dos setores acadêmicos e dos empresários envolvidos nessa cadeia produtiva, bem como do fato de que já existe um robô que pode substituir o trabalho perigoso e exaustivo das crianças.
Jorio Dauster é colaborador especial do Relatório Reservado
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