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Editorial
Se a Assembleia Constituinte estivesse em curso, as condições históricas fossem as mesmas da época e, principalmente, o deputado Fernando Gasparian estivesse vivo, talvez fosse o caso de retrofitar o polêmico artigo 192 da Constituição, que instituiu o tabelamento dos juros reais em 12%. E também de trazê-lo à baila. Voltemos no tempo, a 1988. Do lado de Gasparian estava o senador Fernando Henrique Cardoso; do lado da banca, por sua vez, se destacava o próprio presidente da República, José Sarney, com o aconselhamento do consultor geral da República, Saulo Ramos. A trava de 12% foi aprovada, só que estendida a todas as operações de crédito bancário, o que significa dizer que o spread de todas as instituições financeiras privadas não poderia, constitucionalmente, subir acima desse patamar. A medida não era autoaplicável e exigia uma regulamentação complementar. Como era sem pé nem cabeça, a lei nunca saiu.
Nesse ponto vale a pena rememorar uma conversa que ocorreu na véspera do nascimento da nova Carta Magna e está publicada na Revista Direito GV (V. 17 N. 2). Com a palavra, Saulo Ramos:
“Dia 4 de outubro, fim de tarde. No dia seguinte, seria promulgada a Constituição de 1988 […] O Presidente Sarney me chamou. Reunião no gabinete […]. Assunto: o art. 192 da Constituição […], que, segundo alguns, entraria em vigor ‘na data da promulgação’, e, segundo outros, dependia de lei complementar. A ameaça maior era o § 3º, que fixava os juros reais em 12% ao ano, coisa do Fernando Gasparian, que […] teve a ideia de fixar os juros no texto constitucional, único na história da humanidade e do dinheiro. Mas nem um nem outro sabia o que era juro real, nem a diferença de juro nominal. Muita discussão no gabinete. ‘O sistema vai quebrar!’; ‘Como não cuidaram disso antes?!’; ‘O texto era um inciso do artigo e, de repente, virou parágrafo!’; ‘Vai entrar em vigor?’; ‘Houve sabotagem!’. Resumindo: sobrou para mim. Sugeri elaborar um parecer jurídico que, aprovado pelo Presidente, vincularia o Banco Central, e esse baixaria ato, obrigando o mercado a esperar a lei complementar prevista naquele artigo. As pessoas ficaram aliviadas e se foram. (RAMOS, 2007, p. 277-278)
Pouco depois dessa reunião, Saulo Ramos encontrou Fernando Henrique Cardoso, então senador, em um restaurante de Brasília. Cheio de si, ele afirmou que seu parecer suspendera a Constituição:
Mais um aspecto curioso da discussão sobre o que entraria ou não em vigor deu-se na semana seguinte, no Piantella, restaurante de Brasília, onde fui almoçar e encontrei o então Senador Fernando Henrique Cardoso. Ele me questionou:
— Você pensa que vai impedir a vigência da Constituição com um simples parecer jurídico?
— Penso. E já está suspensa.
E o Supremo Tribunal pensou a mesma coisa. Quando atacaram meu simples parecer jurídico com uma Adin […], acabou a festa. Além de dizer que não entrava em vigor, o STF ainda declarou que a regulamentação legal de todos os comandos do art. 192 teria que ser feita por meio de uma única lei complementar. Uma só.
[…]
Somente em 2004, já no Governo Lula, o artigo 192 da Constituição foi reformado, e aqueles 12% de teto para os juros foram revogados (RAMOS, 2007, p. 278-279)”.
O curioso é que nem o Superior Tribunal sabia exatamente distinguir, nessa pendência, o que era juro real e nominal, tamanha a complexidade que foi dada à questão. Nesse momento caiu o tabelamento dos juros de morte morrida. Agora, se o tabelamento nominal da Selic, e não do setor bancário lato sensu, fosse de 12% ou qualquer outro percentual razoável a ser perseguido, daria o que pensar. Primeiro, forçaria um resultado primário capaz de mantê-la nesse patamar. Com a Selic controlada, ela deixaria de ser o maior vetor do aumento da dívida pública interna. E passaria a ser o pivô da política fiscal. O governo teria de buscar nas suas contas o resultado primário necessário para segurar a taxa básica no índice tabelado.
A medida daria um peso maior à Lei da Responsabilidade Fiscal – que cá entre nós, ficou meio sem sentido. Os 12% poderiam ser reconstitucionalizados. Em vez do teto de gasto de Michel Temer, depois apropriado por Paulo Guedes e politicamente incumprível, o teto de juros teria dois caminhos para ser realizado: por meio do fiscal ou da redução direta dos juros, portanto do déficit nominal. Fora que teria um apelo de comunicação muito mais fácil. Na verdade, esse mesmo caminho poderia ser feito ao contrário, com uma meta de dívida pública interna, que exigiria juros baixos e superavit primário, acrescidos, last but not least, de PIBs vitaminados. Os dois trajetos, ou seja, o tabelamento da Selic e a meta da dívida interna bruta, levariam aos mesmos resultados.
Se os Poderes quisessem contribuir para tornar a medida politicamente mais viável, responsabilizariam o Legislativo pelo corte no primário necessário para segurar os juros em 12%. Certamente ajudaria se fosse aprovada uma meta de inflação mais razoável para mitigar a pressão sobre a Selic. Hoje, com as previsões mais recentes, a dívida bruta interna voltou a se tornar uma ameaça. A Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão de monitoramento das contas públicas, estima que, em 2026, a dívida vai subir para 84% do PIB. A OCDE é mais modesta e projeta um aumento menos acelerado no tempo. A dívida interna bruta cresceria com menos velocidade, alcançando o marco de 100% do PIB em 2037. Isso, sendo mantidas as metas de política fiscal que atualmente vigoram. Seja como for, a dívida bruta interna é o principal indicador de solvência de um país. No caso do Brasil, isso é ainda mais realçado na medida em que não temos passivo em moeda forte. Mas vai ser difícil, muito difícil, o governo enxergar uma tese que já atravessa décadas.
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