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O que precisa ser dito
Matheus Sousa Ramalho, colaborador especial
Conforme anunciado no Fato Relevante de 11 de março de 2025, a Americanas ingressou com o procedimento arbitral CAM 294/25 contra seus ex-executivos, buscando responsabilizá-los pelos danos materiais e imateriais decorrentes da fraude contábil bilionária revelada em 2023.
A demanda tem base no artigo 159 da Lei das S.A., que trata da responsabilização de administradores por prejuízos causados à companhia. No que se refere aos pedidos formulados, a Americanas busca:
(i) a condenação de seus ex-executivos ao pagamento de indenização por todos os danos materiais e imateriais decorrentes da fraude contábil identificada no exercício social de 2022 — ou seja, recuperar integralmente os prejuízos sofridos pela empresa;
(ii) o reembolso integral das custas e despesas do procedimento arbitral, incluindo honorários de árbitros, taxas da câmara e gastos com advogados e peritos. Em disputas dessa natureza, os custos da arbitragem costumam ser expressivos.
Vale destacar ao leitor que os pedidos apresentados pela Americanas são, por ora, provisórios. Eles ainda podem ser ampliados ou detalhados ao longo do processo, à medida que novas provas forem reunidas e os prejuízos calculados com mais precisão. Na prática, isso significa que a arbitragem pode acabar abarcando muito mais do que os fatos já narrados até aqui — especialmente se surgirem novos elementos vindos de investigações paralelas ou de colaborações com autoridades públicas.
A leitura técnica dos pedidos revela que a Americanas pretende ir além do simbolismo: busca atribuir responsabilidade pessoal direta aos ex-administradores estatutários, com base não apenas na condução omissa ou negligente, mas na autoria direta de atos fraudulentos.
Segundo a companhia, as conclusões sobre os ilícitos atribuídos aos executivos foram baseadas no trabalho do Comitê Independente — já detalhado em fatos relevantes anteriores — e referendadas por parecer de auditoria publicado em agosto de 2024, que apontou a celebração de contratos fictícios de verbas de propaganda cooperada (VPC), operações financeiras conhecidas como “risco sacado” e lançamentos fraudulentos na conta Fornecedores, com o objetivo de ocultar passivos e inflar os resultados da varejista.
É evidente que a companhia precisava mover esse processo contra os antigos executivos. Neste período pós-homologação da recuperação judicial, a arbitragem surge como um caminho natural para tentar encontrar os verdadeiros culpados e viabilizar um “fresh start”.
Vale lembrar: a escolha pela arbitragem não foi uma jogada estratégica da Americanas — é uma exigência do regulamento. Companhias listadas no Novo Mercado da B3, como é o caso, têm de resolver disputas societárias por meio desse mecanismo. A arbitragem é um caminho que prioriza especialização, agilidade e discrição, e vem sendo cada vez mais comum no universo corporativo brasileiro.
Importante notar que a Lei de Arbitragem não prevê o sigilo como elemento essencial do procedimento arbitral. Ainda assim, no Brasil, o sigilo costuma ser a regra — por força de regulamentos das câmaras arbitrais e das próprias cláusulas de arbitragem.
No caso da ação movida pela Americanas contra os executivos, o Regulamento e o Regimento Interno da Câmara de Arbitragem do Mercado, vinculada à B3, determinam que os procedimentos arbitrais devem tramitar sob sigilo absoluto. O dever de confidencialidade é imposto a todas as partes envolvidas — árbitros, testemunhas, advogados, peritos e até a secretaria da câmara.
Para dar a dimensão do sigilo arbitral, vale esclarecer que o Fato Relevante divulgado pela Americanas sobre a instauração do procedimento só foi possível graças a uma obrigação imposta pela Resolução CVM nº 80/2022, que determina a divulgação pública de certas informações essenciais — como o número do procedimento, a data de instauração, o objeto da disputa e as partes envolvidas.
Fora essas hipóteses de divulgação obrigatória previstas na norma da CVM, todo o restante permanece lacrado. Provas, estratégias, depoimentos, alegações cruzadas ou defesas contundentes — tudo corre sob sigilo.
Do ponto de vista institucional arbitral, esse tipo de precaução é compreensível. Mas, para o mercado e o público que ainda digerem os escombros de uma das maiores fraudes corporativas dos últimos tempos, fica a apreensão: que tudo acabe mesmo em um jantar com pizza — à porteira fechada.
Não se pretende aqui criticar a via arbitral ou a regra geral de confidencialidade, mas apenas levantar uma reflexão sobre como sua aplicação irrestrita compromete a transparência em um caso de evidente interesse público — um caso que, diga-se, vale mais do que espiar o Big Brother.
E há muitos verdadeiramente interessados nesse reality show envolvendo a nata do capitalismo nacional. O mercado financeiro e os investidores, de olho bem aberto no próximo passo da varejista dos 3G brothers, continuam sem respostas concretas sobre o que efetivamente ocorreu nos bastidores da companhia.
Qual foi a real participação de cada ex-administrador nos ilícitos? Havia falhas estruturais que favoreceram as inconsistências contábeis? Quais prestadores de serviço podem ter colaborado, ainda que indiretamente, para o ocorrido? E, por outro lado, o que os acusados têm a dizer sobre a empresa e seus antigos colegas?
A Americanas apresentará sua narrativa: um esforço legítimo para responsabilizar aqueles que, em suas palavras, cometeram ilícitos e comprometeram a sobrevivência da empresa. Para a companhia, este é um passo essencial para tentar recuperar parte dos danos sofridos e reforçar sua governança pós-recuperação judicial. A tese será a de que a fraude foi orquestrada sem seu conhecimento direto.
Mas o que os ex-executivos vão alegar? Se seguirem a linha de defesa já ventilada publicamente, dirão que foram bodes expiatórios de um problema muito maior — talvez estruturado em níveis superiores da organização. Os executivos alegam que o sistema permitia e mascarava o que agora lhes é imputado.
E os diretores independentes? E os auditores? Como todos eles vão se posicionar? Os argumentos jurídicos são densos e afiados para todos os lados. Mas o mais interessante desse caso não está apenas no resultado final — está no que for revelado ao longo do caminho. Inclusive, nas hipóteses de acordo.
Diante do tamanho do escândalo e da complexidade das narrativas que se formaram em torno do colapso da Americanas, conduzir um processo de responsabilização longe dos olhos do público representa mais uma camada de opacidade sobre um caso que já é, por si só, enevoado. E aí entra a pergunta essencial: não era a hora de abrir essa caixa-preta?
O caso da Americanas é um exemplo claro de por que é urgente arejar o debate sobre transparência na arbitragem societária. O Projeto de Lei 2925/2023 propõe justamente isso: regulamentar a publicidade das arbitragens envolvendo companhias abertas.
Sem entrar nos méritos específicos da proposta — que, respeitosamente, ainda se beneficiaria de ajustes técnicos em pontos relevantes —, o espírito da ideia merece atenção. Mitigar o sigilo e impor graus mais robustos de transparência seria uma evolução institucional natural, especialmente em disputas com alto impacto público.
A Resolução CVM nº 80/2022 deu o primeiro passo. Mas ficou longe de resolver o problema. Hoje, as companhias precisam fazer apenas divulgações seletivas, limitadas a informações mínimas — o suficiente para cumprir a norma, mas insuficiente para promover accountability.
O sigilo faz sentido em disputas contratuais pontuais ou litígios sem repercussão. Mas quando falamos de Americanas, o cenário é outro. Aqui, o sigilo não protege apenas documentos — protege versões. Narrativas. E, eventualmente, culpados.
Há delações premiadas, investigações e procedimentos em curso nas esferas criminal, administrativa e regulatória. O cruzamento entre esses processos e o que se discute na arbitragem poderia — e deveria — contribuir para o esclarecimento mais amplo dos fatos.
Por mais que, em um mundo ideal, petições, atas de audiência e depoimentos fossem públicos e não protegidos por sigilo — permitindo fact-checking e confronto com outras frentes de apuração —, ainda é possível sonhar com um meio-termo para um processo arbitral menos opaco:
• Relatórios periódicos sobre o andamento do caso, com os principais temas em debate;
• Divulgação dos termos essenciais de eventuais acordos, para evitar a sensação de impunidade ou manipulação;
• Publicidade da decisão final, garantindo que o desfecho não desapareça sob o manto do sigilo arbitral.
É fato: a arbitragem foi fundamental para o avanço do mercado de capitais brasileiro. Mas o caso Americanas evidencia que o sigilo hermético das arbitragens societárias pode colidir diretamente com os princípios de governança e transparência que ela mesma se propõe a proteger.
A Americanas está longe de ser apenas uma novela corporativa. Este caso define o futuro do mercado brasileiro. E se hoje ninguém vê o que está sendo julgado, qual é a garantia de que algo está realmente sendo resolvido? Será que os argumentos seriam os mesmos, as estratégias idênticas, os cuidados iguais se tudo estivesse exposto à luz do dia?
No fim das contas, o paradoxo está formado: um escândalo bilionário, que já gerou CPI e mobilizou credores no Brasil e no exterior, será decidido longe dos olhos do público.
Nem para inglês ver.
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