Matheus Sousa Ramalho - Relatório Reservado

Artigos: Matheus Sousa Ramalho

(Im)perfeição: Proteção do investidor ou corrida armamentista?

16/07/2025
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A confiança é a viga mestra de um mercado de capitais saudável. Para que investidores — de pequenos poupadores a grandes fundos de pensão — aloquem seus recursos de forma eficiente, é indispensável que acreditem que as regras do jogo são justas e funcionam. Pessoas investem  convictas de que irão receber sua fatia do bolo quando ele crescer — ou, no mínimo, que haverá quem garanta a entrega do seu pedaço, ainda que mingado.

Naturalmente, cada novo escândalo — daqueles que ganham manchete de jornal ou sessão exclusiva em sala premium de cinema — vai corroendo essa confiança. Cada episódio repete, sob nova embalagem, a velha narrativa: acreditar na veracidade das informações divulgadas vira sinônimo de ingenuidade patológica, e quem ousa confiar acaba, ironicamente, “com a sacola na mão”. A punição por excesso de ambição se converte em espetáculo.

Em tempos em que más notícias monopolizam o imaginário coletivo, o debate sobre responsabilidade corporativa (“accountability”, para os íntimos) vira palco de polarização: de um lado, os “culpados”; do outro, as “vítimas”; e, em volta, os “alienados” — sempre prontos a alegar ignorância conveniente.

Nesse cenário de arena e gladiadores, emerge a ideia aparentemente natural de que só tornaremos o mercado mais seguro equipando os próprios agentes com mais ferramentas de fiscalização. Ou seja, um “colab” dos axiomas “o capital fiscaliza o capital” e “a grama só cresce aos olhos do dono”.

É aí que o debate sobre private enforcement ganha força —fortalecer instrumentos para que mais agentes do mercado possam buscar justiça pelas próprias mãos (dentro dos meios legais), atuando em paralelo às instituições tradicionais de defesa.

O tema é especialmente quente no Brasil, ainda mais diante da crescente movimentação de grupos de investidores recorrendo à Inglaterra, Holanda, EUA — e beyond — em busca da tutela dos seus direitos. Não vou me aprofundar aqui no debate, delicadíssimo, sobre se um país estrangeiro teria melhores instrumentos (ou legitimidade) para julgar litígios ocorridos no Brasil. O fato é: a discussão é atual, relevante, e precisa ser enfrentada por quem realmente quer ver as regras do jogo cumpridas e os transgressores responsabilizados.

Um debate legislativo recente e relevante no Congresso Nacional materializou essa discussão no Substitutivo ao Projeto de Lei (PL) n° 3.899/2012. Como o texto é um “combo” de pautas, adianto ao leitor que o foco aqui será justamente na absorção das propostas do PL n° 2.925/2023 — este, sim, com reforma cirúrgica na Lei das S.A. e do Mercado de Capitais, mirando o fortalecimento do private enforcement.

Dentro desse contexto, a análise será dividida em três atos: (i) o que, afinal, está proposto no PL n° 2.925/2023; (ii) como esse projeto se conecta e se entrelaça ao novo substitutivo do PL n° 3.899/2012, especialmente no capítulo do private enforcement; e (iii) uma reflexão crítica sobre o que, no fim das contas, há para celebrar — considerando o estado real do nosso mercado de capitais e a tendência nada lírica que se desenha para o futuro.

  1. O Projeto de Lei n∘ 2.925/2023

Toda reforma legislativa no mercado de capitais é, em essência, uma recalibragem do risco. O Projeto de Lei n° 2.925/2023, apresentado pelo Ministério da Fazenda em abril de 2023, é talvez a tentativa mais ambiciosa dos últimos anos de redefinir — na marra — quem segura o abacaxi quando o caldo entorna. Nascido de um diagnóstico da OCDE que expôs a fragilidade da proteção dos acionistas no Brasil, o projeto vai além do ajuste técnico: propõe uma mudança de cultura.

O objetivo declarado? Fortalecer a governança corporativa, empurrando o pêndulo da responsabilidade para administradores e controladores, ao mesmo tempo em que “arma” os investidores com novas ferramentas de litígio.

O projeto introduzia mudanças significativas na Lei das S.A. e na Lei do Mercado de Capitais, com a bandeira de “alinhar” o Brasil a práticas internacionais — supostamente — mais robusta:

  • Uma Nova “Arma” no Arsenal do Investidor: O PL propunha a criação da “ação civil coletiva de responsabilidade”. Investidores com 2,5% de uma classe de valores mobiliários, ou posição superior a R$ 50 milhões, poderiam processar administradores e controladores em nome de todos os lesados. Para incentivar o litígio, o prêmio ao autor saltaria de 5% para 20% do total recuperado. O recado era claro: mexer no equilíbrio risco/benefício de quem resolve ir à Justiça.
  • Farol Aceso sobre a Confidencialidade Arbitral: O texto ousava ao determinar que arbitragens de companhias abertas seriam, em regra, públicas. E as câmaras de arbitragem teriam de publicar seus precedentes, jogando luz sobre um universo paralelo tradicionalmente mais opaco.
  • “Acordões”, só com a Bênção da Assembleia: O projeto queria incluir na competência da assembleia-geral a autorização para qualquer acordo que encerrasse uma ação de responsabilidade. Mais que isso, criava um poder de veto inédito, permitindo que acionistas com 10% do capital votante rejeitassem a transação.
  • Aprovação de Contas sem “Passar Pano”: Para corrigir o que muitos viam como falha do sistema atual, a aprovação de contas em assembleia não mais exoneraria automaticamente administradores e fiscais. O “quitus” dependeria de deliberação específica e expressa na ordem do dia, bem como revelação explícita.
  • Big Brother CVM: O projeto ampliava os poderes de investigação da CVM, autorizando mandados de busca e apreensão via Judiciário e ampliando o papel da autarquia como amicus curiae também na arbitragem, garantindo a voz do regulador.

O projeto chegou ao Congresso como o cavaleiro branco do famoso livro atribuído ao Apóstolo João — “o que vem e vence triunfante” — embalado por um pedido de urgência na tramitação. Ou seja: pulando todos os obstáculos do rito congressual, dispensando o debate nas comissões técnicas e indo direto ao ponto, enquanto todos assistiam, de queixo caído, ao cavalo vencedor marchando rumo ao pódio.

Mas — como todo pacote ambicioso e aparentemente bem-intencionado que resolve mexer em pauta sensível — a proposta não passou ilesa. Entre “tudo muito bom e tudo muito bem”, sobraram perguntas incômodas no ar:

  • Indenização ampla e irrestrita por qualquer tipo de falha? O texto do PL é de uma amplitude rara: bastaria uma infração à legislação ou à regulamentação do mercado para abrir as portas à indenização. Em tese, qualquer ato — do mais grotesco ao mais técnico — poderia embasar uma demanda coletiva. Isso tem dupla face: de um lado, reforça a proteção dos investidores; de outro, introduz um elemento de insegurança, já que a elasticidade do conceito de “infração” multiplica o potencial de litígio. E aqui, novamente, o PL mantém o freio clássico: tudo depende do investidor conseguir provar o nexo causal e, principalmente, a culpa ou dolo do agente. Amplidão na entrada, funil na saída.
  • Afinal quem pagará essa conta? O texto do PL era, no mínimo, ambíguo: a responsabilidade por “infração à legislação e à regulamentação do mercado de valores mobiliários” recairia sobre a companhia ou diretamente “na física” do administrador e do controlador. Empreender ou administrar passa a ser território restrito aos ultra corajosos — verdadeiros gladiadores espartanos do capitalismo brasileiro — visto que ninguém saberia ao certo pelo que responde, nem até quando.
  • Prejuízo pulverizado para os underwriters? O PL não esqueceu dos coordenadores e intermediários de ofertas públicas: incluiu-os expressamente no rol dos potenciais responsáveis civis. Mas, logo em seguida, ergueu um escudo processual: a responsabilização só se materializa mediante prova de culpa ou dolo. Na prática, tanto o investidor quanto o distribuidor ficam em terreno movediço: (i) para o investidor, recai o ônus de reconstruir, em juízo, não só o dano como também o estado mental do banqueiro no momento da oferta — tarefa hercúlea, digna de detetive de filme noir; (ii) para o distribuidor, resta operar sem saber, de antemão, o que seria ou não considerado crível nesse contexto.
  • Como fica a ação coletiva com as regras de arbitragem do Novo Mercado? Como fica a ação coletiva diante das regras já existentes de arbitragem do Novo Mercado? O PL passou longe de harmonizar essas esferas — sequer dedicou um artigo ao tema — abrindo margem para um cenário inusitado: companhia e demais acusados podendo ser linchados, ao mesmo tempo, por uma arbitragem e por uma ação coletiva. E tem um ponto que também ficou fora do PL — aquele clássico “raro, mas acontece bastante” das terras tropicais: e se uma associação de investidores do Novo Mercado — todos sujeitos à arbitragem obrigatória pelo estatuto — resolvesse ajuizar uma Ação Civil Pública na Justiça comum? Assim e aparentemente, estaria escancarada a saída de emergência que permitiria, legalmente, que a associação aplicasse um “dibre” na arbitragem, transformando uma restrição contratual em atalho coletivo. No fim, a reforma que prometia clareza só sofisticou — e muito — o contencioso societário brasileiro e a vida de todos os seus agentes.

Não se sabe se algum desses pontos contribuiu, mas o PL n° 2.925/2023 sofreu um plot twist digno de roteiro: o pedido de urgência foi retirado e o projeto estrategicamente devolvido ao barril de vinho para maturar. Até então, ninguém sabia se as ideias seriam enterrados ou apenas recuando para melhor avançar.

  1. Uma Aliança Inusitada: Economia Circular e Responsabilidade Corporativa:

O PL n° 2.925/2023 foi apensado ao PL n° 3.899/2012, uma proposta que se arrasta há mais de uma década e que, nesse tempo, virou guarda-chuva para dezenas de projetos sobre sustentabilidade. O relator, no melhor estilo “tudo junto e misturado”, optou por um Substitutivo unificador, criando a nova e abrangente “Política Nacional de Economia Circular” (PNEC).

Mas afinal, o que é Economia Circular? Segundo o próprio projeto, trata-se de um “sistema econômico regenerativo que mantém o fluxo circular de recursos e associa a atividade econômica à gestão inteligente de materiais, produtos e energia, por meio da adição, retenção ou recuperação de valor”. A meta declarada é abandonar o velho modelo linear (extrair, produzir, descartar) e migrar para um ciclo virtuoso: menos resíduos, mais vida útil para produtos, estratégias de reparo, remanufatura e reciclagem.

A justificativa oficial para fundir a reforma do private enforcement (PL 2.925) com essa pauta “verde” está no relatório: os instrumentos clássicos de comando-e-controle ambiental não dão conta dos desastres socioambientais de grande escala. A proposta, então, é criar incentivos privados: fortalecer a responsabilidade civil de administradores e dar mais poder aos investidores, apostando que o capital fiscaliza melhor o capital — e que, no bolso, o risco socioambiental será evitado antes que exploda.

A costura legislativa é elegante no papel, mas levanta uma dúvida estratégica: estamos diante de uma evolução genuína do conceito de sustentabilidade, ou de uma manobra para facilitar a aprovação de uma pauta espinhosa? Economia circular é aplaudida por todos; já uma reforma que amplia litígios contra administradores e controladores sempre enfrentou resistência dos setores empresariais — e seus respectivos defensores na arena política.

Ao empacotar a controversa agenda do private enforcement dentro da embalagem verde e popular da sustentabilidade, o projeto recebe um greenwash de modernidade e urgência ambiental. Mas a pergunta que fica é: a agenda sustentável virou apenas o “cavalo de Troia” para uma reforma estrutural da responsabilidade corporativa que, sozinha, teria um caminho muito mais árduo no Congresso?

Tecnicamente, até há racionalidade na junção das agendas — mas, politicamente, trata-se da mais clássica estratégia: uma pauta de consenso abrindo caminho para outra, de dissenso. E, no fim, todo mundo sai dizendo que venceu.

  1. PL 2923 Reloaded

A manobra foi politicamente astuta. Ao enxertar a espinhosa reforma do private enforcement no popular — e aparentemente inofensivo — projeto da “Economia Circular” (PL n° 3.899/2012), os autores garantiram sobrevida à pauta, mas, no processo, a transformaram.

A versão reloaded do PL n° 2.925 veio ligeiramente mais contida — para alívio de muitos no mercado. Eis o que mudou:

  • Menos Abstração, Mais Foco: Antes, o PL 2.925 responsabilizava administradores por qualquer prejuízo decorrente de “infração à legislação e à regulamentação do mercado de valores mobiliários” — um conceito amplo e vago. Agora, a indenização se restringe a danos causados por “infração à legislação e à regulamentação relativas à divulgação de informações ao mercado.” Procurou-se delimitar o risco dentro de 4 linhas.
  • Quem paga a conta, afinal? No texto original, reinava a ambiguidade: companhia ou pessoas físicas de administradores e controladores? O novo Art. 27-G, §4º, resolve de forma taxativa: “As companhias não são responsáveis pelos danos sofridos pelos investidores nos termos do caput.” Só há exceção quando a companhia atua como ofertante em distribuição ou aquisição de valores mobiliários — alinhando o texto à prática europeia.
  • Responsabilidade individualizada entre distribuidores: No PL original, a distinção entre ofertantes, coordenadores e demais distribuidores era nebulosa — e o texto também ignorava o peso da participação de cada um na oferta. O texto rebranded tenta resolver o ponto: cria um regime específico para coordenadores, condicionando sua responsabilidade ao descumprimento do “dever de diligência” e, principalmente, estabelece que a responsabilidade é proporcional à participação na oferta, deixando claro que não há solidariedade automática entre os distribuidores — ou seja, nada de responsabilidade coletiva pelo todo.
  • Ação Coletiva: Jogo para Menos Jogadores: A legitimidade para propor ação civil coletiva ficou mais restrita. Se antes bastava deter 2,5% dos valores mobiliários ou R$ 50 milhões em posição, agora (Art. 27-H), o direito cabe à CVM, ao Ministério Público, a investidores com 5% dos valores mobiliários, e ao agente fiduciário de debenturistas. De quebra, a CVM passaria a ter poder para alterar esses critérios de legitimação, por regulamento.
  • Morde e Assopra: O texto confere ao juiz o poder de reduzir equitativamente a indenização se houver “excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano”, podendo até excluir a responsabilidade se convencido da boa-fé do agente. Por mais que a clemência soe justa, dois problemas novos surgem: (i) entrega-se ao julgador o destino solitário da punição, num jogo de plateia; (ii) a ausência de critérios objetivos coloca o magistrado no fogo cruzado entre ser tachado de punitivista ou excessivamente leniente — nenhum dos rótulos é confortável para quem julga sob os holofotes do mercado e da opinião pública.

No fim, as aspirações originais da reforma perderam alguns dentes. O pêndulo, que no texto original pendia agressivamente a favor dos investidores, agora retorna a uma posição um pouco mais equilibrada — pelo menos até o fim deste episódio da saga.

Embora seja louvável o esforço de aprimorar o texto e as diversas audiências técnicas promovidas pelos autores junto às classes, o PL 2923 reloaded fechou algumas arestas, mas inevitavelmente abriu outras. Deixo no ar para o leitor algumas perguntas que me ocorreram ao analisar o novo texto:

  • Vigiar e Punir: afinal, qualquer falha informacional pode gerar indenização, mesmo sem critério de materialidade ou avaliação da gravidade e do impacto real da falha?
  • Seguro-Litígio do Investidor: E quem se beneficiou de um trade no período em que a informação errada estava no mercado, mas agiu de boa-fé — pode embolsar o lucro ou terá que devolver? Dar o direito de judicializar apenas para quem perdeu não seria, na prática, criar um “seguro de mercado”, nivelando o investidor por um valor flutuante e interminado, sem o compromisso de devolver ganhos assimétricos em cenários de falha?
  • Liquidando a fatura pelo: Valor de Mercado, Valor do Valuation ou Roleta?: Como é que se calcula o valor desse dano e da indenização por uma “falha informacional”? Vale a flutuação do papel, a perda de valuation ou algum critério híbrido? Embora o debate americano sobre “event studies” já seja maduro — e amargo —, o PL reloaded parece querer importar para o Brasil um jogo de roleta à moda dos russos: tudo dependerá do olhar (e da metodologia) do perito na hora de isolar o efeito no preço de determinado valor mobiliário.
  • Arbitragem ou Judiciário: Continua faltando clareza sobre como a ação civil pública vai dialogar com o sistema arbitral do Novo Mercado — especialmente: os investidores/acionistas poderão então ingressar no Judiciário a despeito da vinculação da cláusula arbitral estatutária?
  • Risco Underwritter: Afinal, a limitação recai apenas sobre o fee recebido pelo distribuidor, ou haverá algum critério proporcional para calcular sua participação na oferta com base no valor total distribuído ou efetivamente transacionado pelo ofertante?
  1. Conclusão: em busca da perfeição do mercado e dos motivos que temos para comemorar

Ninguém é contra os grandes axiomas: transparência, força vinculante das promessas, o dever de indenizar em caso de falhas. O zeitgeist do PL 2.923 é, sem dúvida, nobre e reflete essa preocupação. Mas, olhando com sensibilidade para o momento atual do mercado brasileiro, cabe perguntar: será mesmo que o nosso grande problema hoje é a falta de segurança jurídica para o investidor?

Mercado de capitais deveria ser palco de atividade econômica, inovação, geração de riqueza — não apenas um amontoado de regras “perfeitas” ou tecnicamente claras. Por mais que a lei seja o meu instrumento de trabalho, abrindo portas para consultorias, disputas ou debates em sala de aula, tenho plena consciência: a atividade mercantil e o empreendedorismo existiam muito antes da regulamentação das corporações.

A lei, por si só, não torna o mercado perfeito. O que faz um mercado pulsar é a circulação de riqueza. Não por acaso, o chamado “livre mercado” se autorregula pelo encontro real entre oferta e demanda.

Sim, a pauta do private enforcement é importante. Mas vivemos um momento singular da história em que, diariamente, mais companhias anunciam OPAs de fechamento do capital. Será mesmo que aprovar uma lei que multiplica a litigiosidade e distribui armas jurídicas de destruição em massa é o chamariz que falta para manter agentes e frequentadores nesse complexo parque de diversões chamado mercado de capitais? Spoiler Alert: não vai ser.

Com ameaças de obsolescência trazidas pela inteligência artificial, conflitos e incertezas vindos das reformas tributárias e da própria estrutura do Estado, Selic nas alturas, tarifaços, concorrência acirrada, rumores de guerra e uma insegurança jurídica que desorienta até nossos maiores juristas diante de questões comezinhas, a tão sonhada terra prometida da “proteção ao investidor” parece mais uma corrida armamentista do que uma iniciativa real de revitalização do mercado.

As moscas são atraídas pelo mel, não pelo vinagre — que, aliás, é o destino de certos vinhos que saem do barril na hora errada. Talvez esse seja o risco do PL 2.923: uma boa ideia que, se tirada prematuramente do barril do amadurecimento, só serviria amargor.

O momento pede regras de desburocratização, incentivos, parcelamentos, fresh start para o empreendedorismo, moratórias e vendas de ativos livres de sucessão — ferramentas para facilitar a circulação, não para punir. Em tempos de fome, todo grito parece ter razão e todas as sangrias se parecem. O que o mercado precisa agora é de fortalecimento dos seus agentes — e que novas armas jurídicas, por ora, permaneçam reservadas no fundo mais gelado da adega.

É possível — e talvez provável — que as novas leis de proteção, em vez de servirem como remédio, acabem funcionando como a gota de veneno que faltava para o enfermo cruzar a fronteira. Qualquer companhia que ainda hesite sobre fechar ou não seu capital dificilmente vai resistir à tentação diante dos rumores da mais nova class action brasileira e das perigosas indenizações por falha informacional que ninguém sabe ao certo como calcular.

Por isso, encerro com o alerta precioso de Renato Russo sobre as mazelas da própria perfeição — e meu pedido de desculpas ao nobre leitor pela extensão desta coluna e eventuais tropeços na “canção” de hoje:

 

“Vamos celebrar o horror
De tudo isso com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção”

Matheus Ramalho é colaborador especial do Relatório Reservado

#Ações #mercado financeiro

Quando a recomendação pode virar manipulação de mercado?

14/05/2025
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O mercado de capitais não é imune a narrativas — ele é feito delas. Mas, quando a palavra de um influenciador vira o estopim de uma disputa judicial por manipulação, surge a pergunta incômoda: até onde vai a liberdade de opinar quando há dinheiro em jogo?

No caso explosivo entre a Hectare Capital e duas frentes distintas — a casa de análises Suno e agentes vinculados à XP — essa pergunta saiu das redes e invadiu os autos. O que começou como uma crítica a um fundo imobiliário se transformou em mandados de busca e apreensão, ações judiciais e uma investigação da CVM. Tudo porque uma opinião — com ou sem conflito de interesse — teria impactado o preço de mercado de um ativo.

Mas o problema não é novo. Em um ambiente saturado de vozes, ser pago para opinar é inevitável. Se um analista critica um produto concorrente enquanto recomenda outro — ainda que remunerado para isso — devemos julgar a origem da fala ou a substância do argumento?

Pense no dentista contratado para promover um novo flúor. Ao desaconselhar a marca antiga e recomendar a patrocinada, ele está manipulando? Ou está apenas emitindo uma opinião incentivada — mas tecnicamente defensável?

Se um influenciador é pago para criticar e, ainda assim, apresenta dados, fundamentos e uma tese coerente — estamos diante de um crime, de um conflito, ou apenas de um mercado onde, nas palavras de Guimarães Rosa, pãos ou pães sempre foram questão de “opiniães”?

Este artigo começa aqui — no limite tênue entre liberdade de expressão, transparência e o risco de transformar recomendação sobre um papel em arma.

 

Entenda o Caso Hectare x Suno e XP — e o cerne da discussão sobre a legítima influência sobre o preço exercida por uma casa de análise

 

Em fevereiro de 2022, o mercado financeiro brasileiro testemunhou o início de uma disputa emblemática entre a gestora Hectare Capital e a casa de análises Suno. A Hectare acusou a XP e a Suno de promover uma campanha orquestrada para desvalorizar seu fundo imobiliário HCTR11, com o objetivo de favorecer o SNCI11 — fundo gerido pela própria Suno e lançado no mesmo período.

A tensão escalou até culminar, em 14 de fevereiro de 2023, numa operação de busca e apreensão que mobilizou oficiais de justiça em três cidades — São Paulo, Porto Alegre e Goiânia. Computadores e celulares de sócios e funcionários foram apreendidos. O mandado, expedido em segredo de justiça, foi obtido a partir de uma ação de produção antecipada de provas movida pela Hectare.

  1. A disputa com a Suno

Segundo a Hectare, a Suno e seus agentes teriam usado suas plataformas, entre os dias 12 e 16 de abril de 2022, para desferir críticas sistemáticas ao HCTR11 em um momento sensível: a 13ª emissão de cotas do fundo estava em andamento.

O impacto foi imediato: as cotas, que variavam entre R$ 103,70 e R$ 105, recuaram para R$ 90,39 — menor valor desde o IPO. A captação, naturalmente, fracassou. A Hectare argumenta que as ações se enquadrariam no conceito de boiler room — um ambiente de pressão mercadológica deliberadamente criado com base em informações sabidamente enganosas, com o objetivo de induzir movimentos artificiais de mercado.

Mensagens atribuídas a um agente reforçaria a acusação, no qual ele teria consultado um advogado sobre “algum ângulo para explorar negativamente” o HCTR11. Para a gestora, a crítica não era apenas técnica — era estratégica e orientada por interesses comerciais diretos: uma campanha de publicidade negativa meticulosamente orquestrada.

A Suno se defendeu, alegando que jamais negociou, negocia ou pretende negociar cotas do HCTR11, e que suas análises seguem controles internos rigorosos e respeito à legislação aplicável.

A complexidade do caso lança luz sobre a estrutura dual da Suno — que opera simultaneamente como casa de análise e gestora de ativos. A legislação admite essa coexistência, mas exige barreiras internas sólidas, as chamadas Chinese Walls, para impedir a contaminação entre análise e interesse comercial.

De fato, a própria Suno já havia, em relatório de fevereiro de 2022, apontado falhas de transparência na gestão do HCTR11, como sobreposição de operações e ausência de relatórios de risco. Na época, preferiu não emitir recomendação formal de compra ou venda — um alerta técnico que, meses depois, se intensificaria no auge da nova emissão.

Além da disputa judicial, a Hectare apresentou uma denúncia à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) contra a Suno e uma notícia-crime à Polícia Federal, que resultaram na abertura de inquérito — ambos em tramitação sob sigilo.

Segundo apuração do jornalista Diego Felix, publicada na Folha de S.Paulo em 5 de fevereiro de 2024, documentos internos da investigação da CVM apontam evidências de que a Suno teria agido para prejudicar a Hectare.

A Suno, em nota à imprensa, afirmou que sempre prestou todos os esclarecimentos solicitados pelas autoridades e reafirmou seu compromisso com a transparência e com o investidor pessoa física. Ainda, a Suno alega que as críticas ao HCTR11 não surgiram no calor da disputa, mas vinham sendo construídas de forma contínua ao longo de meses, com base em riscos reais identificados na estrutura jurídica e na governança dos ativos sob gestão da Hectare.

Um exemplo central citado pela defesa da Suno e um de seus analistas diz respeito ao ativo Circuito de Compras São Paulo SPE Ltda., cuja estrutura teria levantado sérias dúvidas sobre a transparência dos fluxos financeiros, os critérios de precificação e a governança das operações incorporadas ao portfólio do HCTR11.

Segundo a Suno, o histórico de críticas à Hectare remonta a um período anterior a qualquer confronto direto ou lançamento de fundo concorrente. A ausência de resposta da gestora a reiterados pedidos de esclarecimento teria, inclusive, motivado comunicações formais à CVM, apontando riscos de governança e potenciais conflitos de interesse associados à administração do fundo.

Esse ponto é crucial porque desafia diretamente a tese da Hectare de que a Suno teria “inventado” uma narrativa crítica com o único propósito de sabotar sua captação. Ao contrário: o que se delineia nos autos da defesa é uma sequência consistente de manifestações públicas e técnicas, com fundamento pré-existente, sobre temas como a concentração de ativos em SPEs com baixa transparência, a ausência de relatórios de risco e a adoção de métodos questionáveis para a rentabilização do fundo.

Nos agravos apresentados, os advogados de defesa reforçam ainda que o processo movido pela Hectare configuraria uma tentativa de instrumentalizar o Judiciário como mecanismo de silenciamento — uma retaliação travestida de tutela cautelar, dirigida contra vozes que exerciam uma função legítima de crítica técnica no mercado.

Dessa forma, o litígio transcende o embate entre players e se projeta como um debate institucional mais amplo: até que ponto uma crítica técnica pode ser considerada incômoda — e quando o incômodo se transforma, indevidamente, em litígio?

 

  1. A disputa com a XP: a alegação de uma campanha subterrânea visando a desmoralização da Hectare

O segundo eixo do conflito jurídico se voltou contra a XP Investimentos e agentes autônomos a ela vinculados, incluindo os escritórios Rio Capital e Criteria Investimentos. A Hectare alegou que esses agentes, a partir de abril de 2022, passaram a disseminar, por canais internos e contatos com investidores, informações infundadas e alarmistas sobre a suposta insolvência do fundo HCTR11.

Segundo informações obtidas, assessores financeiros teriam alertado cotistas para “zerar posição” no fundo “antes que o dinheiro virasse pó”. Em supostos diálogos registrados, os agentes citavam como base para suas recomendações materiais internos, atribuídos à própria XP, embora nunca tenham fornecido cópias ou evidências concretas.

De acordo com a inicial da ação de produção antecipada de provas, juntada como anexo público em agravos posteriores, há o relato de um investidor que teria sido aconselhado por agentes da Rio Capital a sair imediatamente do HCTR11, sob a justificativa de que parte dos ativos do fundo estaria vinculada a um esquema de luvas — “quase uma propina” conforme escrito na petição — e em vias de inadimplência. Quando pressionados, os assessores afirmaram que as informações tinham sido repassadas pela XP, mas se recusaram a apresentar qualquer documentação de suporte, alegando tratar-se de material confidencial.

Além dessas conversas, o documento menciona um informe de 12 páginas, elaborado pela Criteria Investimentos e compartilhado via WhatsApp, que apontava uma série de operações supostamente arriscadas, descrevendo o fluxo de capital do HCTR11 como “comprometido” e sugerindo que o fundo “manipulava seu capital para evitar um default”.

Para a Hectare, esse conjunto de medidas implementadas pelos réus configuraria uma campanha orquestrada para induzir pânico de mercado e direcionar investidores a fundos concorrentes — inclusive o VGHF11 e o MCHF, coordenados pela própria XP, e indicados pelos mesmos agentes como alternativas mais seguras no mesmo período.

A XP, por sua vez, negou qualquer envolvimento institucional, afirmou que não produziu relatórios com esse conteúdo e declarou que jamais sugeriu inadimplência do HCTR11. Também reforçou que não foi formalmente intimada na ação e se desvinculou das iniciativas dos escritórios autônomos.

 

  1. TJSP extingue processo e o mercado continua: Suno, Hectare e o alerta estrutural para fundos imobiliários

No dia 5 de junho de 2024, a 1ª Câmara Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pela extinção da ação de produção antecipada de provas movida pela Hectare Capital contra a Suno. A decisão parece querer extinguir a etapa mais visível do litígio civil que, no ano anterior, havia culminado em mandados de busca e apreensão nos escritórios da Suno em São Paulo, Goiânia e Porto Alegre.

Mas a disputa está longe de terminar. A Hectare declarou que pretende recorrer da decisão e afirmou que outras frentes do conflito permanecem ativas — em especial, o inquérito em sigilo na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e uma notícia-crime protocolada na Polícia Federal. Segundo revelou reportagem da Folha de S.Paulo, a gestora sustenta que a operação judicial era necessária para apurar indícios de condutas que extrapolariam o direito de crítica e configurariam manipulação deliberada de mercado.

Do outro lado, a Suno manteve sua linha narrativa. Em nota, reafirmou a legitimidade de sua atuação como casa de análise independente, reforçou seu compromisso com os investidores individuais e declarou que sempre operou dentro dos limites legais e regulatórios.

O pano de fundo dessa batalha, no entanto, vai além do embate jurídico. O caso trouxe à tona fragilidades estruturais de uma fatia significativa do mercado de fundos imobiliários — especialmente os chamados “fundos de papel” high yield, que operam com Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) de maior risco em troca da promessa de dividendos elevados.

O HCTR11, foco da controvérsia, é símbolo desse modelo. Em setembro de 2023, surpreendeu seus mais de 200 mil cotistas com um corte de 66% no valor dos rendimentos distribuídos — o maior desde o IPO do fundo. O impacto foi imediato. Além da frustração financeira, o episódio reacendeu questionamentos sobre a real sustentabilidade dos proventos gerados por estruturas de maior alavancagem.

Como apontou reportagem do Valor Investe, publicada em 21 de setembro de 2023, o episódio escancarou a fragilidade da tomada de decisão baseada exclusivamente em dividendos passados. Muitos investidores continuam escolhendo produtos pela promessa de retorno mensal, sem considerar a qualidade dos ativos, a robustez das garantias ou a resiliência do fluxo financeiro.

Especialistas ouvidos pela publicação do Valor Investe alertaram que fundos como o HCTR11 são mais expostos a inadimplência, atrasos de pagamento e deterioração de garantias — riscos que permanecem invisíveis até o momento em que se concretizam. A materialização desses riscos mostrou que, em determinados segmentos, o apetite por yield pode engolir a análise de fundamento.

 

Autópsia Conclusiva: entre o limiar do abuso e da liberdade de expressão

 

Os conflitos jurídicos em torno da disputa entre Hectare e Suno — e, em paralelo, com a XP — iluminam um ponto de tensão estrutural no mercado de capitais: o limite entre crítica fundamentada e manipulação de preços.

Mais do que um embate reputacional, o caso exige retorno ao núcleo duro da regulação — em especial ao art. 27-C da Lei nº 6.385/76, à Resolução CVM nº 20/2021 e, de forma complementar, à Resolução CVM nº 179/2023, que atualizou os padrões de transparência exigidos de analistas, distribuidores e intermediários quanto à remuneração e aos potenciais conflitos.

A Lei do Mercado de Capitais (Lei nº 6.385/76), que instituiu a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em seu artigo 27-C, exige materialidade concreta para que se configure o crime de manipulação de mercado. Não basta uma crítica ruidosa ou um movimento brusco no preço de um ativo. Para que haja manipulação, é necessário comprovar a existência de intenção deliberada, meio apto e efeito artificial sobre o preço ou volume negociado de um valor mobiliário, com o objetivo de obter vantagem indevida ou causar prejuízo a terceiros.

Manipulação não se presume — ela precisa ser demonstrada com densidade probatória. O simples fato de um analista ser remunerado, ou de haver um conflito de interesses declarado, não basta para configurar manipulação de mercado. Para ser considerada manipuladora, a recomendação precisa ser dolosa, dissimulada e descolada de qualquer base técnica legítima.

A Resolução CVM nº 20/2021 aprofunda esse filtro. O art. 12 exige que o analista atue com probidade, boa-fé e ética profissional; o art. 8º impõe a adoção de código de conduta com compromisso ativo com a veracidade das informações. Ou seja: não é a identidade do analista que define a licitude da crítica — é a substância da análise.

E a Resolução CVM nº 179/2023 fortalece esse arcabouço ao exigir disclosure expresso, estruturado e acessível sobre formas de remuneração e potenciais conflitos de interesse — inclusive em plataformas digitais. O art. 26-A impõe que intermediários informem, de forma clara e ostensiva, qualquer remuneração associada à recomendação de valores mobiliários. Já o art. 26-E exige que o cliente seja alertado, no exato momento da ordem de investimento, sobre o impacto econômico daquele vínculo.

Esse novo arcabouço reforça uma lógica essencial: o mercado não exige neutralidade — exige transparência. E, com ela, impõe-se juízo técnico sobre o conteúdo.

Casas de análise não operam num vácuo. O mercado é um ecossistema de incentivos — e não há problema nisso. Quando um analista critica um produto concorrente enquanto recomenda outro, é necessário examinar dois eixos: (i) se houve disclosure claro e tempestivo; (ii) se a crítica possui fundamento técnico verificável.

O primeiro é uma questão de forma; o segundo, de substância.

Em outras palavras: a análise deve ser julgada pelo conteúdo — não pela remuneração de quem a profere. Assim como se distingue conflito formal de material, também é necessário separar opinião vendida de opinião inválida. A primeira pode ser antiética se mal revelada. A segunda, só será ilícita se dolosa, manipuladora, desprovida de base.

O mercado está repleto de “hired guns” — analistas pagos para opinar, influenciadores patrocinados, consultores bancados por fundos. Isso, por si, não contamina a mensagem. O que importa é: o conteúdo se sustenta? Tem lógica, dados, método? Ou é apenas espuma performática travestida de análise?

A informação patrocinada, quando revelada e sólida, pode contribuir legitimamente para a descoberta de preço. Pode alertar para riscos ignorados. Pode até corrigir disfunções assimétricas. O que o mercado — e a regulação — não tolera é o uso dissimulado da credencial técnica como arma de guerra competitiva.

Para além dessas discussões sobre limite de opinião, o caso lança luz a uma questão secundária: a fragilidade estrutural do investidor de varejo frente a produtos complexos. A queda de 66% nos proventos do HCTR11 em 2023 mostrou que o problema vai além do jurídico — há um descompasso brutal entre o apetite por dividendos e a real capacidade de avaliar risco de crédito.

Em um ambiente onde os proventos pingam com facilidade, e os relatórios nem sempre são lidos até o fim, a lição é clara: nem tudo que reluz é dividend yield.

A liberdade de análise e expressão é ativo vital para a eficiência informacional do mercado. Silenciar críticas tecnicamente estruturadas com base apenas em interesses concorrenciais cria um precedente perigoso. A descoberta de preços depende de embate entre visões conflitantes — mesmo quando incômodas.

Por isso, a crítica — ainda que ácida, ainda que patrocinada — deve ser testada em sua robustez, não em sua origem. Se for rasa, que seja exposta. Se for sólida, que seja absorvida. Manipulação exige mais que desconforto: exige dolo, artifício, distorção. E isso — ao menos por enquanto — ainda precisa ser provado.

Nesse cenário, a estratégia adotada pela Hectare se torna objeto legítimo de escrutínio. Não se teve acesso às provas que embasaram os pedidos cautelares — e abusos, se houver, devem ser investigados. Mas a resposta via litígio, sem engajamento técnico público, não passou incólume. Ao evitar o debate transparente, a gestora se deixou à mercê do mesmo tipo de crítica que tentou judicializar.

A Hectare tem, sim, o direito de acionar o Judiciário para fazer sua defesa institucional. Mas esse direito traz consigo ônus reputacional: quando a resposta à crítica é silêncio técnico e judicialização seletiva, o mercado percebe. E, como sempre, precifica.

Matheus Ramalho é colaborador especial do Relatório Reservado

#Investimento #Mercado

Americanas propõe processo arbitral sigiloso contra ex-executivos

8/04/2025
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Matheus Sousa Ramalho, colaborador especial

Conforme anunciado no Fato Relevante de 11 de março de 2025, a Americanas ingressou com o procedimento arbitral CAM 294/25 contra seus ex-executivos, buscando responsabilizá-los pelos danos materiais e imateriais decorrentes da fraude contábil bilionária revelada em 2023.
A demanda tem base no artigo 159 da Lei das S.A., que trata da responsabilização de administradores por prejuízos causados à companhia. No que se refere aos pedidos formulados, a Americanas busca:
(i) a condenação de seus ex-executivos ao pagamento de indenização por todos os danos materiais e imateriais decorrentes da fraude contábil identificada no exercício social de 2022 — ou seja, recuperar integralmente os prejuízos sofridos pela empresa;
(ii) o reembolso integral das custas e despesas do procedimento arbitral, incluindo honorários de árbitros, taxas da câmara e gastos com advogados e peritos. Em disputas dessa natureza, os custos da arbitragem costumam ser expressivos.
Vale destacar ao leitor que os pedidos apresentados pela Americanas são, por ora, provisórios. Eles ainda podem ser ampliados ou detalhados ao longo do processo, à medida que novas provas forem reunidas e os prejuízos calculados com mais precisão. Na prática, isso significa que a arbitragem pode acabar abarcando muito mais do que os fatos já narrados até aqui — especialmente se surgirem novos elementos vindos de investigações paralelas ou de colaborações com autoridades públicas.
A leitura técnica dos pedidos revela que a Americanas pretende ir além do simbolismo: busca atribuir responsabilidade pessoal direta aos ex-administradores estatutários, com base não apenas na condução omissa ou negligente, mas na autoria direta de atos fraudulentos.
Segundo a companhia, as conclusões sobre os ilícitos atribuídos aos executivos foram baseadas no trabalho do Comitê Independente — já detalhado em fatos relevantes anteriores — e referendadas por parecer de auditoria publicado em agosto de 2024, que apontou a celebração de contratos fictícios de verbas de propaganda cooperada (VPC), operações financeiras conhecidas como “risco sacado” e lançamentos fraudulentos na conta Fornecedores, com o objetivo de ocultar passivos e inflar os resultados da varejista.
É evidente que a companhia precisava mover esse processo contra os antigos executivos. Neste período pós-homologação da recuperação judicial, a arbitragem surge como um caminho natural para tentar encontrar os verdadeiros culpados e viabilizar um “fresh start”.
Vale lembrar: a escolha pela arbitragem não foi uma jogada estratégica da Americanas — é uma exigência do regulamento. Companhias listadas no Novo Mercado da B3, como é o caso, têm de resolver disputas societárias por meio desse mecanismo. A arbitragem é um caminho que prioriza especialização, agilidade e discrição, e vem sendo cada vez mais comum no universo corporativo brasileiro.
Importante notar que a Lei de Arbitragem não prevê o sigilo como elemento essencial do procedimento arbitral. Ainda assim, no Brasil, o sigilo costuma ser a regra — por força de regulamentos das câmaras arbitrais e das próprias cláusulas de arbitragem.
No caso da ação movida pela Americanas contra os executivos, o Regulamento e o Regimento Interno da Câmara de Arbitragem do Mercado, vinculada à B3, determinam que os procedimentos arbitrais devem tramitar sob sigilo absoluto. O dever de confidencialidade é imposto a todas as partes envolvidas — árbitros, testemunhas, advogados, peritos e até a secretaria da câmara.
Para dar a dimensão do sigilo arbitral, vale esclarecer que o Fato Relevante divulgado pela Americanas sobre a instauração do procedimento só foi possível graças a uma obrigação imposta pela Resolução CVM nº 80/2022, que determina a divulgação pública de certas informações essenciais — como o número do procedimento, a data de instauração, o objeto da disputa e as partes envolvidas.
Fora essas hipóteses de divulgação obrigatória previstas na norma da CVM, todo o restante permanece lacrado. Provas, estratégias, depoimentos, alegações cruzadas ou defesas contundentes — tudo corre sob sigilo.
Do ponto de vista institucional arbitral, esse tipo de precaução é compreensível. Mas, para o mercado e o público que ainda digerem os escombros de uma das maiores fraudes corporativas dos últimos tempos, fica a apreensão: que tudo acabe mesmo em um jantar com pizza — à porteira fechada.
Não se pretende aqui criticar a via arbitral ou a regra geral de confidencialidade, mas apenas levantar uma reflexão sobre como sua aplicação irrestrita compromete a transparência em um caso de evidente interesse público — um caso que, diga-se, vale mais do que espiar o Big Brother.
E há muitos verdadeiramente interessados nesse reality show envolvendo a nata do capitalismo nacional. O mercado financeiro e os investidores, de olho bem aberto no próximo passo da varejista dos 3G brothers, continuam sem respostas concretas sobre o que efetivamente ocorreu nos bastidores da companhia.
Qual foi a real participação de cada ex-administrador nos ilícitos? Havia falhas estruturais que favoreceram as inconsistências contábeis? Quais prestadores de serviço podem ter colaborado, ainda que indiretamente, para o ocorrido? E, por outro lado, o que os acusados têm a dizer sobre a empresa e seus antigos colegas?
A Americanas apresentará sua narrativa: um esforço legítimo para responsabilizar aqueles que, em suas palavras, cometeram ilícitos e comprometeram a sobrevivência da empresa. Para a companhia, este é um passo essencial para tentar recuperar parte dos danos sofridos e reforçar sua governança pós-recuperação judicial. A tese será a de que a fraude foi orquestrada sem seu conhecimento direto.
Mas o que os ex-executivos vão alegar? Se seguirem a linha de defesa já ventilada publicamente, dirão que foram bodes expiatórios de um problema muito maior — talvez estruturado em níveis superiores da organização. Os executivos alegam que o sistema permitia e mascarava o que agora lhes é imputado.
E os diretores independentes? E os auditores? Como todos eles vão se posicionar? Os argumentos jurídicos são densos e afiados para todos os lados. Mas o mais interessante desse caso não está apenas no resultado final — está no que for revelado ao longo do caminho. Inclusive, nas hipóteses de acordo.
Diante do tamanho do escândalo e da complexidade das narrativas que se formaram em torno do colapso da Americanas, conduzir um processo de responsabilização longe dos olhos do público representa mais uma camada de opacidade sobre um caso que já é, por si só, enevoado. E aí entra a pergunta essencial: não era a hora de abrir essa caixa-preta?
O caso da Americanas é um exemplo claro de por que é urgente arejar o debate sobre transparência na arbitragem societária. O Projeto de Lei 2925/2023 propõe justamente isso: regulamentar a publicidade das arbitragens envolvendo companhias abertas.
Sem entrar nos méritos específicos da proposta — que, respeitosamente, ainda se beneficiaria de ajustes técnicos em pontos relevantes —, o espírito da ideia merece atenção. Mitigar o sigilo e impor graus mais robustos de transparência seria uma evolução institucional natural, especialmente em disputas com alto impacto público.
A Resolução CVM nº 80/2022 deu o primeiro passo. Mas ficou longe de resolver o problema. Hoje, as companhias precisam fazer apenas divulgações seletivas, limitadas a informações mínimas — o suficiente para cumprir a norma, mas insuficiente para promover accountability.
O sigilo faz sentido em disputas contratuais pontuais ou litígios sem repercussão. Mas quando falamos de Americanas, o cenário é outro. Aqui, o sigilo não protege apenas documentos — protege versões. Narrativas. E, eventualmente, culpados.
Há delações premiadas, investigações e procedimentos em curso nas esferas criminal, administrativa e regulatória. O cruzamento entre esses processos e o que se discute na arbitragem poderia — e deveria — contribuir para o esclarecimento mais amplo dos fatos.
Por mais que, em um mundo ideal, petições, atas de audiência e depoimentos fossem públicos e não protegidos por sigilo — permitindo fact-checking e confronto com outras frentes de apuração —, ainda é possível sonhar com um meio-termo para um processo arbitral menos opaco:
• Relatórios periódicos sobre o andamento do caso, com os principais temas em debate;
• Divulgação dos termos essenciais de eventuais acordos, para evitar a sensação de impunidade ou manipulação;
• Publicidade da decisão final, garantindo que o desfecho não desapareça sob o manto do sigilo arbitral.
É fato: a arbitragem foi fundamental para o avanço do mercado de capitais brasileiro. Mas o caso Americanas evidencia que o sigilo hermético das arbitragens societárias pode colidir diretamente com os princípios de governança e transparência que ela mesma se propõe a proteger.
A Americanas está longe de ser apenas uma novela corporativa. Este caso define o futuro do mercado brasileiro. E se hoje ninguém vê o que está sendo julgado, qual é a garantia de que algo está realmente sendo resolvido? Será que os argumentos seriam os mesmos, as estratégias idênticas, os cuidados iguais se tudo estivesse exposto à luz do dia?
No fim das contas, o paradoxo está formado: um escândalo bilionário, que já gerou CPI e mobilizou credores no Brasil e no exterior, será decidido longe dos olhos do público.
Nem para inglês ver.

#Americanas #Matheus Sousa Ramalho

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