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Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira estão chorando migalhas para capitalizar as Lojas Americanas. Não querem colocar um “bilhãozinho” sequer da sua fortuna pessoal – o patrimônio somado do trio, segundo a Forbes, é de R$ 160 bilhões. Mas, se forem acionados na Justiça norte-americana, os mais festejados capitalistas do Brasil talvez tenham de pagar muito mais caro. Segundo juristas ouvidos pelo RR, um dos maiores fatores de risco é como a Corte dos Estados Unidos vai encarar a responsabilidade da Americanas e de seus principais sócios à luz da Absolute Priority Rule. Em linhas gerais, trata-se do regramento do direito norte-americano que estabelece a ordem de pagamento dos credores nos processos falimentares, segmentando cada classe da maior para a menor preferência no recebimento de valores. Em seu fato relevante, a própria Americanas admitiu que suas demonstrações financeiras divulgadas nos últimos anos partiram de premissas equivocadas. Mais do que isso: os erros contábeis colocam em xeque os resultados positivos apurados pela companhia. Ou seja: muito provavelmente, a rede varejista distribuiu dividendos e bônus em cima de lucros imaginários, para não dizer ganhos maquiados. Esses pagamentos pregressos podem ser interpretados pela Justiça norte-americana como uma violação à Absolute Priority Rule. Se as demonstrações financeiras retificadas da Americanas trouxerem uma reversão do resultado, isto é, lucro virar prejuízo, a companhia estará “confessando” à Justiça dos Estados Unidos que gastou ontem o dinheiro que deveria ser usado hoje para o pagamento de credores. Nessa hipótese, ficará configurado que acionistas e executivos “furaram” a fila de credores – no direito falimentar norte-americano, ambos são considerados “residual owners”, na prática aqueles que somente podem receber depois que todos os credores forem pagos.
No Brasil, o mea culpa da Americanas em relação aos erros das suas demonstrações financeiras não produz efeitos adversos na recuperação judicial. O mesmo não pode ser dito no caso dos Estados Unidos. O direito norte-americano prevê a figura do claw back, que se aplica tanto à falência quanto aos procedimentos de reestruturação judicial. Por esse mecanismo, os beneficiados indevidamente pela distribuição de dividendos e bônus podem ser obrigados a devolver os valores recebidos, para que os recursos sejam redistribuídos entre os credores, seguindo a ordem rígida imposta pela Absolute Priority Rule. E, em caso de irregularidades, quem mais teria se locupletado de dividendos gerados artificialmente se não o trio Lemann, Sicupira e Telles, maiores acionistas da companhia?
O claw back é um afiado bisturi que corta fundo empresas fora da lei e seus gestores. O mecanismo permite também que transações fraudulentas deliberadamente preparadas pelo devedor para dilapidar o patrimônio antes do pedido de reorganização sejam objeto de impugnação. Pode ser aplicado também para suspender operações financeiras ou societárias realizadas dentro de um período considerado “suspeito”. Nesse caso a Justiça costuma perseguir medidas realizadas por acionistas que poderiam configurar algum tipo de proteção já antevendo que uma bomba está prestes a explodir. Apenas a título ilustrativo: a Corte dos Estados Unidos pode, por exemplo, colocar foco sobre a reestruturação societária das Americanas em 2021, quando Lemann, Sicupira e Telles deixaram de exercer a figura de controladores para se tornar “apenas” acionistas de referência, reduzindo sua participação acionária de 53,3% para 29,2%.
Um exemplo do rigor com que a Justiça norte-americana costuma tratar violações à Absolute Priority Rule e determinar o claw back: no caso Madoff, uma das maiores fraudes financeiras da história, o Tribunal de Apelações dos Estados Unidos permitiu que algumas vítimas que investiram de boa-fé na pirâmide devolvessem parcela dos recursos recebidos. A medida foi adotada exatamente para assegurar que a divisão dos ganhos e prejuízos entre os credores fosse feita de maneira homogênea. Outro episódio que mostra a enrascada jurídica de Lemann e cia.: no recente caso de fraude da FTX, Sam Bankman-Fried, fundador da empresa, teve a sua prisão decretada pouco tempo depois do recebimento do pedido de falência, com base no Chapter 11, e da rápida proliferação de solicitações de claw back. Acusado de envolvimento nas fraudes que levaram ao colapso da exchange de criptomoedas, Bankman-Fried só deixou a cadeia, para acompanhar o processo em liberdade, após pagar uma fiança de US$ 250 milhões. A imagem de Fried escoltado por policiais e com uma tornozeleira eletrônica certamente não se coaduna ao que um dia Lemann, Sicupira e Telles convencionaram chamar de o “sonho grande”.
No arcabouço jurídico norte-americano sobram previsões legais que tornam a situação não só da Americanas como de Lemann, Telles e Sicupira bem mais delicada. Nos Estados Unidos existem as chamadas Punitive Damages, ou “danos punitivos”, também conhecidas como “danos exemplares”, que pode multiplicar dezenas de vezes o valor das indenizações devidas aos credores lesados. O espírito das Punitive Damages é exatamente fazer com que o ilícito saia muito mais caro para o fraudador do que os lucros auferidos com as irregularidades. Na legislação brasileira, não existe punição equivalente. “No direito norte-americano existe uma série de standards jurisprudenciais e doutrinários aplicáveis aos casos de securities litigation com enredo semelhante ao da Americanas. Portanto, é mais fácil antever a consequência de alguns atos do que no direito brasileiro”, afirma ao RR o advogado Matheus Sousa Ramalho, especializado em direito empresarial e litígios falimentares e presidente da Comissão de Assuntos Legislativos da OAB-RJ. Ramalho ressalta que no direito norte-americano “o tipo de prova separa o joio do trigo, isto é, distingue as hipóteses de erro grosseiro da cegueira deliberada, que imputa o conhecimento do ilícito ao beneficiário, e, principalmente, da fraude ou conduta equiparável. Essa mistura de normas substanciais e processuais facilita a aplicação do regime indenizatório a ser aplicado em cada caso, fazendo com que exista maior clareza no cálculo da dosimetria das penas e liquidação dos danos”.
Segundo Ramalho, “algumas particularidades do modelo processual praticado nos Estados Unidos facilita a reunião de elementos probatórios para a construção de teses jurídicas mais certeiras, por meio dos procedimentos de Discovery”. Por Discovery entenda-se uma série de mecanismos do direito norte-americano que permitirão à Justiça dissecar as entranhas contábeis da Americanas, desvendar o modus operandi ilícito e eventualmente comprovar a participação dos acionistas de referência. Por este instrumento, antes mesmo do início formal do processo, o juiz pode permitir que as partes façam uma varredura cruzada em busca das melhores provas para a construção do caso. É que os juristas chamam de “busca da verdade real”. “Poucos países dispõem de um instrumento similar e tão contundente para investigar o cometimento de um eventual ilícito. Os mecanismos assegurados pelo procedimento de Discovery poderiam trazer maior transparência sobre as informações contábeis da Americanas, o que possibilitaria a realização de perícia contábil-econômica com base em informações bastante próximas da realidade. Além disso, o Discovery possibilitaria quebra do sigilo de comunicações entre os investigados, assim como a acesso à amplo acervo documental para além da contabilidade,”, explica Matheus Ramalho.
É irônico constatar que foi a própria Americanas que trouxe a Justiça dos Estados Unidos para o caso ao evocar o Chapter 15, pedido já deferido pelo juiz Michael E. Wiles, do Tribunal de Falências do Distrito Sul de Nova York. Em busca de um movimento preventivo, os advogados da empresa teriam acionado os mecanismos de proteção previstos na referida seção do Bankruptcy Code com um objetivo principal: obter os efeitos advindos do Automatic Stay, ou seja, o poder de paralisar a realização de medidas expropriatórias contra a companhia. Trata-se de um hedge que vai além das fronteiras dos Estados Unidos: diversos países atribuem ao Automatic Stay reconhecido pelas Bankruptcy Courts norte-americanas eficácia global. No entanto, o movimento feito pelos advogados da Americanas traz um risco embutido, ao abrir brecha para que a própria Justiça dos Estados Unidos americana chame para si um protagonismo maior na investigação e responsabilização de Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles.
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