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Até quando as fintechs permanecerão em um limbo regulatório?

  • 5/08/2024
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O Banco Central está quebrando a cabeça para atualizar o arcabouço legal das fintechs. A regulação original para atuação dessas plataformas digitais caducou – um paradoxo tratando-se de um país que tem reconhecidamente umas das estruturas de regulação e fiscalização do sistema financeiro mais rígidas e eficientes do mundo. A conformidade para a existência, oferta de crédito e limites da área de atuação – contida em duas Resoluções, nos 4.656 e 4.657, criadas em 2018 pelo Conselho Monetário Nacional, por sua vez derivadas da Lei n° 12.865/2013, que modernizou o Sistema de Pagamentos Brasileiro – se tornou anacrônica e incapaz de fiscalizar o mercado de “instituições financeiras vagalumes”.

Posteriormente, em 2021, o BC criou a Lei Complementar no 182, conhecida como um pretenso Marco Legal das Startups, mas que, na realidade, se caracterizou mais por criar condições de ampliação do número de fintechs do que aprimorar o compliance dessas empresas. Por outro lado, as Leis de Proteção Geral de Dados e do Sigilo Bancário e a Política de Segurança Cibernética foram sendo desatualizadas pela velocidade dos fatos e já não conversam entre si da mesma forma como quando foram promulgadas.

Portanto, não existe, de fato, um marco regulatório das fintechs, que passaram, em múltiplos casos, a realizar uma espécie de “paymentwashing” nas operações de pagamentos. O BC sabe disso e também reconhece o potencial de informalidade dos vagalumes. Mas, assim como o mexilhão, está imprensado entre a rocha e o mar: de um lado, atrasar um segmento que tem enorme potencial de inovação: do outro, reduzir a assimetria da regulamentação entre os bancos e as fintechs.

Hoje existem, no Brasil, 1.481 empresas ativas identificadas nesse segmento. Há estimativa de que o número de fintechs informais no país chegue a quase o triplo. Essas empresas atuam com as mais diversas nomenclaturas: neobancos, bancos digitais, startups financeiras, bancos online, plataformas financeiras, instituições de pagamentos, entre outras. Apesar da pressão dos grandes bancos varejistas, o mercado de fintechs evoluiu exponencialmente, tanto de forma benéfica quanto negativa. O BC nada sem saber dar braçadas em um oceano de instituições que fogem ao seu controle e começam, além do risco de conformidade financeira, a ter forte impacto social. O mercado das fintechs cresce com velocidade junto às classes C, D e E, segmentos de baixa renda, com predominância para os dois últimos.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva revela que um em cada três brasileiros com mais de 16 anos não possui conta bancária. São 45 milhões de pessoas, um universo composto, principalmente, por mulheres (59%) e negros (69%), dos quais 39% vivem no Nordeste do país. É nesse grupo social que os “vagalumes” ora iluminam, ora escurecem, a vida de pessoas com menos condições de avaliação da garantia e segurança das operações. Estas enxergam o menor custo do empréstimo e de tarifas e a possibilidade de dar como contrapartida o pagamento com bens variados – carros e até móveis e eletrodomésticos – e antecipação salarial.

O BC navega em águas que vão dos aspectos criminais (lavagem de dinheiro e financiamento ao tráfico e ao terrorismo) até os sociológicos, ou seja, a ampliação das Igrejas e templos nesse mercado por meio de fiéis (laranjas), fidelizados devido ao apelo religioso. A Febraban tem se preocupado extremamente com o assunto. Não é por outro motivo que promove nos dias 15 e 16 de outubro o 4° Congresso de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento ao Terrorismo (PLDFT).  Com relação à interseção com a religiosidade, o BC não teria grande dificuldade de identificar partes dos operadores formais e informais das Igrejas. Basta ver a propaganda feita pelo portal evangélico “Guia-me”, voltado à divulgação dos diversos projetos sociais em diferentes modelos, que são “financiados por doações de fiéis e repassados para os seus missionários, o que gera um volume ainda imensurável de transações diretas e indiretas”. Aí tem, é claro. Mas o assunto é delicadíssimo.

As fintechs oferecem quase todos os serviços bancários – cartões de crédito, contas digitais, empréstimos, crédito consignado etc. Em pouco tempo, sem um marco regulatório capaz de fiscalizar a participação dessas empresas em outros produtos financeiros, elas estarão presentes em diversos outros setores contíguos. Um exemplo é a perspectiva iminente – conforme o RR antecipou – do ingresso no Brasil da chinesa Ant Financial, braço de pagamentos do Alibaba e considerada a maior “fintech” do mundo. A Ant promete alternativas aos planos de saúde por intermédio de consórcios.

Hoje são notórias as “fintechs das comunidades”, leia-se favelas, que crescem, em grande parte, por meio da intimidação dos moradores. O open finance, que simplifica a troca de uma instituição financeira por outra, também está nessa cesta que permite maior facilidade de expansão da clientela. Antes que alguém entenda que a alcunha de vagalume, como as fintechs são denominadas no mercado, se estenda ao setor, há notáveis exemplos de instituições bem-sucedidas que são referências, inclusive internacionais, a exemplo do Nubank.

Por outro lado, o Nubank, assim com outras grandes fintechs, servem de “espelho” para os vagalumes. Há uma multidão de clientes potenciais para os quais os vagalumes podem ser um “Nubank”, por falta de esclarecimento e regulação. Essas micro instituições têm uma superlativa capacidade de elisão das regras de conformidade.

Os problemas são complexos. Abrangem, entre outros, a oferta de serviços financeiros descentralizados de modo geral. Blockchain e DLT (Distributed Ledger Technologies) já não são mais uma tendência, mas realidade. As fintechs trouxeram ganhos de inovação, custos baixos, mobilidade, mas estão na fronteira do risco sistêmico, conforme alerta do Fundo Monetário Internacional. O BC certamente não desconhece, por exemplo, paper do FMI, de 2022, que alerta para uma bolha de fintechs. Vale a pena reproduzir alguns trechos:

“Os bancos digitais estão adquirindo importância sistêmica em seus mercados locais. Também conhecidos como neobancos, estão mais expostos do que seus pares tradicionais a riscos decorrentes de empréstimos ao consumidor, que geralmente têm menos proteção contra perdas porque tendem a não contar com garantias. Sua exposição também estende à maior assunção de riscos em suas carteiras de títulos, bem como maiores riscos de liquidez (especificamente, a relação entre ativos líquidos e depósitos tende a ser menor nos neobancos do que nos bancos tradicionais)”.

“Esses fatores também criam uma dificuldade para os reguladores: os sistemas de gestão de risco e a resiliência geral da maioria dos neobancos ainda não foram testados em uma retração econômica. As fintechs não apenas assumem maiores riscos, mas também exercem pressão sobre seus rivais tradicionais. A rentabilidade dessas empresas prejudica consideravelmente a rentabilidade dos bancos tradicionais, e tudo indica que essa tendência será mantida.

Outra inovação tecnológica que cresceu rapidamente nos últimos dois anos é a de finanças descentralizadas, uma rede financeira baseada em criptomoedas sem um intermediário central. Também conhecidas como DeFi, elas oferecem a possibilidade de fornecer serviços financeiros mais inovadores, inclusivos e transparentes, graças a maior eficiência e acessibilidade. Contudo, as DeFi também envolvem acumulação de alavancagem, além de serem particularmente vulneráveis aos riscos cibernéticos, de liquidez e de mercado. Os ciberataques, que podem ser graves para os bancos tradicionais, são muitas vezes letais para essas plataformas, roubando ativos financeiros e abalando a confiança dos usuários. A inexistência de um seguro de depósitos nas DeFi aumenta a percepção de que todos os depósitos estão em risco. Em média, mais de 30% de um depósito é perdido ou sacado após um ciberataque”.

“Conforme mais serviços financeiros passam de bancos regulados para entidades e plataformas com pouca ou nenhuma supervisão, o mesmo ocorre com os riscos associados. Apesar das fintechs terem surgido para desafiar os bancos tradicionais em seu próprio território, elas trazem mais do que a simples concorrência. Com efeito, ambos continuam interligados, inclusive quando os bancos fornecem liquidez e alavancagem às fintechs. Isso representa desafios para as autoridades financeiras na forma de arbitragem regulatória (quando as empresas se mudam ou montam operações em setores e regiões menos reguladas) e interconexão, o que pode exigir medidas regulatórias e de supervisão, inclusive uma melhor proteção a consumidores e investidores.”

 

#Banco Central #Fintechs

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