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Governo
Mais uma vez, pela ala política do Planalto, capitaneada pelo ministro chefe da Casa Civil, Rui Costa, voltam as discordâncias de fundo com Fernando Haddad e Simone Tebet. O impasse agora não é a meta inflacionária – em que pese o cenário internacional estar nos empurrando na direção de um eventual repique dos preços internos, levando o BC a sair de uma modesta sinalização da queda da taxa de juros para reiniciar um ciclo de Selic mais alta. O fato é que o stop and go da taxa básica desgasta o BC e tem efeito político negativo. Mas a questão citada acima, que vem sendo tratada com todo cuidado, é a possibilidade de uma mexida na cláusula de alocações fixas de recursos saúde e educação, encravada na Constituição. A obrigatoriedade de um percentual pré-determinado do orçamento para saúde e educação é a bola da vez. Uma bola até murcha de tanta discussão, mas que agora parece voltar ao campo recauchutada. Essas duas determinações levam a um engessamento dos gastos e a uma controversa premissa de que as prioridades do país não vão mudar nunca, nem de setor, nem na exigência quantitativa. Em tom de blague, nas condições atuais, um maremoto na costa brasileira talvez pudesse gerar um debate se os rígidos recursos da saúde e educação poderiam ou não ser deslocados para combater o desastre.
A Constituição determina, em seu Artigo 212, que a União deve aplicar pelo menos 18% da receita com impostos em educação. No caso dos estados e municípios, o sarrafo é ainda mais alto: 25%. Em relação à Saúde, o gasto obrigatório da União fixado pelo Artigo 198 da Carta Magna corresponde a 15% de sua Receita Corrente Líquida. Já estados e municípios devem canalizar, respectivamente, 12% e 15% da arrecadação tributária para a saúde. Parece claro que ninguém discute a prioridade dos dois setores, que precisam ser protegidos das extravagâncias fiscais e políticas brasileiras, a exemplo dos recursos destinados crescentemente às emendas parlamentares – só elas comem mais da metade do dinheiro do diferencial dos valores orçamentários para saúde e educação a título de despesas obrigatória. Mas digamos que a dupla Haddad e Tebet ganhe a parada. A mudança da regra ficaria para algum campo futuro, distante do atual mandato. É mais um aperfeiçoamento do que um dispositivo de uso imediato. Qualquer dessas medidas dificilmente poderá ser tomada no ano que vem, devido à dobradinha LDO e eleições presidenciais, no caso da LDO de 2025 somente poder ser aplicada em 2026. E mais: a alteração das transferências é matéria constitucional. E como reforma constitucional é geradora de polêmicas, imaginem algo dessas proporções. Melhor ir devagar com o andor. Portanto, as dificuldades de implementação das mudanças nas diretrizes orçamentárias empurram o efeito da alteração para 2026. É um problema: o projeto não é a bandeira talhada para uma disputa eleitoral. Se dependesse de Haddad e de Tebet, a medida já vinha neste ano, com percentual de redução fixo: para começar um ponto percentual na dotação do orçamento da saúde e outro ponto percentual no da educação. Parece que Haddad e Tebet estão monotematicamente focados no fiscal. Mas há melhorias que precisam ser feitas pelo seu efeito positivo multidisciplinar.
No que diz respeito à mudança do percentual de obrigatoriedade nos gastos em saúde e educação, não há nenhuma evidência empírica ou estudo científico sobre os números da transferência orçamentária não poderem ser alterados ou que os percentuais tenham de ser os estabelecidos. O mesmo se aplica à adoção de um sistema de bandas, novo quindim do corpo técnico (revelação em primeira mão do RR). Nessa última fórmula, haveria um intervalo onde os recursos poderiam fluir para outras áreas. Sair da educação um tanto para saúde mesmo, por exemplo. Ou quem sabe um tiquinho para ciência e tecnologia ou mesmo para a segurança, mantida, é claro, a essência da prioridade original. Com os dados disponíveis hoje, passado tanto tempo desde 1988, é bem provável que os tetos e pisos da obrigatoriedade orçamentária devam ter sido decorrentes da iniciativa de algum constituinte que achou da sua cabeça os percentuais convenientes. E ponto final.
O intervalo entre as bandas deveria ser reduzido de forma a não descaracterizar as prioridades-chave, saúde e educação. A flexibilização dos pisos poderia, hipoteticamente, ter contribuído em algum percentual das transferências de R$130 bilhões, em 2023. Para este ano, os valores reservados no PLDO são de R$ 231 bilhões em saúde e R$ 181 bilhões em educação. Estamos falando de uma verba superior a R$ 400 bilhões. Justo? Justíssimo? Mas há espaço para a flexibilidade? Claro que há. Não raro esse dinheiro carimbado, com obrigatoriedade de uso, fica como sobra de gastos para o ano que vem. Nesse sistema de bandas, apenas como exemplo hipotético, uma variação para baixo ou para cima de dois pontos percentuais no piso significaria a liberação de R$ 8 bilhões do orçamento para outras áreas ou a adição de igual valor nas despesas com saúde e educação. Ou não. Mas as autoridades responsáveis pelas respectivas Pastas ou outras de influência correspondente ou superior teriam o direito de argumentar pela sua tese da adoção das mudanças.
Ressalte-se que o sistema de bandas, caso implementado, não seria um instrumento para uma espécie de estelionato fiscal, apenas idealizado para ajudar no equilíbrio fiscal – não sejamos hipócritas, eventualmente pode gerar algum efeito positivo – mas, sim, alterado para permitir mudanças entre o teto e o piso, em situações de necessidade comprovada. O que o governo precisa é ter alguma flexibilidade. Não há país que condicione com tamanha rigidez os gastos setoriais orçamentários, isso em qualquer época ou diante de qualquer problema. Em uma análise preliminar é uma forma de mitigar a percepção que o país não cumpre o que determina. É um verdadeiro fracasso institucional e uma demonstração de que o país não é sério.
Consta que o Dr. Ulysses Guimarães e o ex-ministro da Previdência Raphael de Almeida Magalhães, depois de aprovada a Constituição, foram ao então templo etílico de Brasília, o Piantella, comemorar o feito e a vitória de algumas grandes inclusões feitas na Carta Magna, entre elas a criação do Ministério Público e o piso para as dotações orçamentárias em educação em saúde. O arguto político e verdadeiro líder da Constituinte falou baixinho: “Sim, foi uma vitória. O problema vai ser tirá-las da Constituição.” Quando uma coisa começa a atrapalhar mais do que ajudar, é hora de mudar antes que ela atrapalhe muito mais.
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